Intervista 22. Giovanni Ricciardi

ESCREVER: ORIGEM, MANUTENÇÃO E IDEOLOGIA

ENTREVISTA CONCEDIDA AO PROFESSOR GIOVANNI RICCIARDI, NO RIO DE JANEIRO, EM 1987, E PUBLICADA NO LIVRO “ ESCREVER: ORIGEM, MANUTENÇÃO E IDEOLOGIA”, LIBRERIA UNIVERSITARIA – BARI, ITÁLIA, 1988

Como começou a escrever?

Comecei a escrever os meus primeiros poemas quando houve aqueles massacres dos negros nos Estados Unidos, por volta de 1967. Eu via aquelas notícias na televisão e aquilo me chocava tremendamente, porque, no Brasil, nós temos essa tradição de uma certa democracia racial e meu irmão de criação era negro, o João Carlos. Então eu, pela força da indignação, que era imensa, e na minha impotência de intervir, porque era criança, comecei a escrever poemas contra o racismo. Foram meus primeiros poemas, ainda de uma forma muito primária, românticos, bastante rimados. Isso foi por volta dos 12 anos de idade. E conseguí publicar meus primeiros poemas em alguns jornais locais. Ais 17 anos, eu tinha vários amigos músicos. A música popular estava num “boom”. Eu seguía esses amigos em vários concertos no interior do Brasil. Um dia, um desses músicos, a quem eu admirava muito, me deu a entender que eu era uma espécie de parasita, que eu não era capaz de criar nada, que eu só servia para carregar os instrumentos. Isso mexeu muito com os meus brios. Eu me perguntei: O que é que eu sei fazer? O que é que eu realmente sei fazer? Eu acho que eu sei escrever.” Ainda em Ouro Preto, nessa mesma cidade em que o grupo se apresentava, escrevi o meu primeiro conto, que logo foi publicado em vários suplemento literários do país. Um ano depois, eu já tinha escrito o meu primeiro livro, Torpalium. Eu fui a uma livraria, depois do livro concluído (esse é até um ponto insólito na literatura brasileira), olhei as capas dos livros e escolhi uma editora – olha que coisa mais ingênua! – : a mais bonita, a mais interessante, a melhor. Tirei xerox dos originais, só com a minha assinatura, sem nenhuma informação sobre mim e enviei pelo Correio. Logo depois disso, fui ser artesão hippie, artesão de couro, em Cabo Frio. Quando voltei, três meses depois, havia um recado para mim de um editor de São Paulo que pedia para eu ligar de volta para ele. Liguei e esse editor me disse: “Seu livro foi aprovado e nós vamos publicá-lo”. Então eu não tive essa fase de publicar em antologias, isoladamente. Minha primeira coisa foi logo um livro individual que teve um sucesso de crítica extraordinário, teve páginas inteiras na “Veja”. Então, conheci a glória literária, digamos, aos 19 anos e me engajei muito nesse processo, passei a viver em torno da literatura, fascinado por essa coisa…

Depois da publicação do primeiro livro o que aconteceu?

Esse primeiro livro, Torpalium, foi um grande sucesso de crítica, mas não atingiu o público imediatamente. “O Pasquim”, que era o grande jornal de esquerda da época, montou uma editora, Codecri, e me convidou a publicar o meu segundo livro, Sabe Quem Dançou?. Este livro foi um sucesso de crítica e de público, porque ele revelou, pela primeira vez, um escritor de uma geração da qual não poderia  vir escritor nenhum. Quando nós surgimos – uma geração de 20, 22 anos de idade, composta, entre outros, de Caio Fernando Abreu, Domingos Pellegrini Jr., Luís Fernando Emediato, Antônio Barreto, João Gilberto Noll – , quando essa geração apareceu, a imprensa a apelidou de “ratos peludos”. A razão desse apelido é interessante. Se você coloca filhotes de rato numa geladeira, eles acabam morrendo, mas os poucos que sobreviverem criarão pelos longos e se alimentarão do próprio gelo e se tornarão mais fortes e mais resistentes do que os ratos normais. O Brasil da nossa época era uma grande geladeira: a imprensa sob censura, os militares na rua, a mediocridade oficial dominante dos militares. Então, nossa geração explodiu com uma força tão extraordinária, que teve que aprender a driblar todas as dificuldades, possíveis e impossíveis, inclusive, a nível de publicação. Nós publicávamos nossas revistas em mimeógrafos, artesanalmente, por isso, também fomos chamados “geração mimeógrafo”. Outro dia me perguntaram, numa entrevista, por que é que tantos escritores da minha geração são donos de editoras: eu, o Emediato, o Márcio Souza, vários. Eu respondi que era porque nós non habituáramos a fazer nossas publicações desde muito cedo. Eu sou de uma geração que, escondidamente, alugava mimeógrafos de escola para rodar os livros. É impressionante o que era a circulação de publicações alternativas do chamado “boom literário brasileiro” (foi por volta de 75, 76)! Outra coisa interessante é a temática da minha geração. A geração anterior faz uma literatura – se você observar – muito dentro do realismo social; basicamente a técnica sempre foi essa. A minha geração não tinha compromisso com a militância política de esqurda que a geração anterior teve. À excessão de Domingos Pellegrini que mantém essa linha, os outros escritores produzem uma literatura muito existencial e muito surrealista também, mas mantendo a proposta política de liberdade da geração anterior. Então, essa novidade de estilo, de temática trouxe um público novo que já estava cansado daquele estilo mais pesado da literatura anterior… Agora sou dono da Editora Anima com Cristina, minha sócia; escrevo n’ “O Estado de São Paulo” uma coluna semanal, aos domingos, e dou aula de Criação Literária. Nos Estados Unidos eu criei o “Writer’s workshop” na Universidade de Vermont; o Professor Afrânio Coutinho queria criar uma Oficina Literária e me convidou para criar essa oficina. Desde aquela época eu venho trabalhando com escritores jovens, mas encontrei grandes resistências, porque no Brasil não há essa tradição de oficinas literárias, as Universidades não absorveram a idéia. Eu tive que criar cursos fora da Universidade, cursos paralelos. Agora, este ano, eu recebi o primeiro convite de uma grande Universidade para criar uma Oficina Literária a partir do próximo mês de março: a Universidade Cândido Mendes, uma Universidade particular do Rio de Janeiro. É o primeiro passo no sentido de uma institucionalização das Oficinas Literárias. Mas fui eu quem trouxe para o Brasil, pela primeira vez, a idéia de Oficina Literária, de laboratório de criação, que era desconhecida aqui.

Mas acho que há um laboratório desse tipo aqui. Parece que o Silviano Santiago trabalhou nisso…

A Nélida Piñon também. Eles fizeram cursos esparsos, de um trimestre e dentro das Universidades. Eram professores de Letras que resolveram trabalhar com seus alunos também nessa área criativa, mas não era um laboratório, no sentido de haver um professor especifico dessa matéria.

Qual é o processo criativo? Como é?

O meu processo de criação se assemelha a um ataque epilético. Falo isso por ser essa a maneira mais objetiva de expressar-me. Começo a ter uma certa inquietude interior, começo a andar de um lado para outro dentro de casa, começo a ficar inquieto, sinto-me como se estivesse “grávido” de um texto que ainda não sei qual é. Então me vem à cabeça uma primeira frase, um personagem ou uma idéia muito simples. Aí eu escrevo direto, elaboro o texto num processo de concentração absoluta. Eu vivo dentro do texto que estou elaborando. Uma vez o texto escrito, concluído, raramente faço modificações. Nunca reescrevo o texto e quando tento reescrever ou não encontro nada para mudar ou, se insisto em mudar, sai pior do que a primeira versão. Isso ocorre tanto em poesia quanto em prosa.

Como escreveu um de seus textos?

São casos tão diferentes… Por exemplo, há um conto que nasceu assim: eu tive um sonho com um homem enorme que cuspia nas pessoas. Quando acordei, percebi que aquele personagem do meu sonho era algo mais que um personagem; era a própria vida brasileira, era o porprio país. Então, eu escrevi o conto, que está no livro Sabe Quem Dabnçou? que se chama Prazer em mim, que é a história de um débil mental, alto, que encontra um ex-guerrilheiro numa fila e começa a escarrar nele. Esse homem, esse débil mental, vai cuspindo durante tantos dias que vai ficando fraco. Quando está para morrer, o outro, a vítima, não pode deixá-lo morrer porque não sabe o que fazer com aquele corpo enorme, mas quer despertar as suspeitas da polícia. Esse conto passou a ser discutido depois, porque ele era uma metáfora do próprio cidadão brasileiro diante do Estado. Sim, porque o brasileiro ao mesmo tempo que era contra a ditadura, precisava mantê-la viva, porque ele tinha comprometimentos ali dentro.

Você tinha consciência disso quando escreveu?

Não. Só tive essa consciência posteriormente. Mas estou dando un exemplo de como o processo criativo se iniciou.

Qual é a relação com a palavra?

O meu estilo está se modificando muito. Hoje é muito cheio de fantasia; cada vez mais ele é elaborado pelo inconsciente. Cada vez mais a razão atua menos. Por exemplo, o Muamba, que é o meu livro mais recente, é uma grande alegoria em que aparecem situações muito surrealistas, muito oníricas, de certa poesia; parece uma viagem de ácido, uma grande alucinação. Eu tenho um conhecimento muito íntimo da palavra; o meu raciocínio se elabora em torno da palavra; eu sonho todo o tempo, crio textos sonhando; eu leio muito; eu vivo impregnado da palavra, então ela flui no momento da criação. Não acredito em sinônimos, acho que cada palavra tem seu corpo, sua alma, sua personalidade. Então se você une essa precisão da palavra com o delírio – acredito que a criação seja uma espécie de delírio domado pela razão –, quando esse delírio aflora e a razão o filtra numa técnica literária, sai um resultado literário satisfatório.

Mas você disse que não liga muito, que não tem necessidade de trabalhar na técnica literária…

Não, pelo seguinte: sinto que quando eu chego a escrever um texto, ele já está pronto. É difícil explicar, mas é como se fosse escrito pelo inconsciente. Você sabe, quando às vezes quer se lembrar de um nome e não consegue e, horas depois, ele pipoca na sua cabeça? Você programou seu inconsciente para a busca daquela palavra. É como se a minha mente estivesse permanentemente preparada para compor histórias; no entanto, eu estou vivendo a minha vida, atendendo telefonemas… De repente, quando a história aflora nesse processo meio epilético a que eu me referi, ela vem pronta, já elaborada com metáforas próprias, com toda uma linguagem. Por exemplo, se o romance vai ser escrito em primeira ou terceira pesoa e uma decisão do inconsciente: eu não penso nas opções, não escolho. Quando ela aflora, só pode ser escrita naquela técnica em que foi escrita no inconsciente. Não existem alternativas; ela já saiu pronta daquela maneira. Aquela é a melhor alternativa. Ela sai como um bolo do forno: pronta para comer.

Por que escreve?

Eu costumo dizer o seguinte: não fui eu quem escolheu a escrita, foi ela quem me escolheu.

Quão privilegiado você é!

Ou desafortunado. Acho talvez, mais desafortunado que privilegiado. Enfim, eu não tive essa alternativa, eu não fiz uma escolha. Quendo me dei conta de mim come indivíduo, eu já estava de tal modo imerso neste mundo que não tinha como não escrever. Eu não “estou” escritor, eu “sou” escritor. Faz parte da minha constituição. Mesmo se eu jamais pudesse publicar uma linha, se ninguém me lesse, eu continuaria a escrever, ou, pelo menos, a elaborar histórias mentalmente, porque é um órgão do meu corpo, é uma víscera.

O que é escrever?

Para mim, escrever é uma espécie de luta contra a morte, contra a precariedade. Eu vejo assim: “O que é que eu sou além dos meus signos? Eu sou um monte de carne pendurada num monte de ossos”. A escrita é uma forma do homem transcender-se a si próprio. Em todos os sentidos. No espaço, porque meu espírito passa a ocupar outros espíritos – o espírito dos leitores –; no tempo, porque, como diz o Elias Canetti, o escritor marca um encontro com outros escritores para certas conversas 200 anos depois. Então a literatura tem esse caráter. Acho que é uma espécie de materialização do espírito; eu sinto assim. É como se eu não coubesse dentro de mim. Acho que o escritor é um homem que transbordou. Eu sou possuído por “raptus”, mas pode haver períodos de entre-safra literária. mas esse período de entre-safra certamente significa a gestação de um novo livro. Às vezes as pessoas me dizem: “Você tem 31 anos e já publicou oito livros!”. Bem, eu publiquei oito, mas já escrevi vinte, pelo menos, e eu não escolhi tantos ou poucos. Inevitavelmente ocorreu dessa maneira. Não sou dono do meu processo de criação, pelo contrário, ele é que me domina. Além disso, acho que cada escritor tem seu ritmo de criação. Alguns escritores passam dez anos elaborando um único texto; às vezes reescrevem esse texto durante anos. Outros, como eu, têm uma espécie de jorro incontrolável e permanente de ficção. É uma coisa fora do meu controle; é um transbordamento do ser.

Onde encontra estímulos e pretextos para escrever?

Dentro do meu inconsciente. Eu não sou um escritor que sai em busca das temáticas do mundo real; eu não escrevo uma literatura documental. O que eu faço é viver. Vivo intensamente as experiências afetivas, profissionais, políticas e essas experiências vão como que se propagando. É como na linguagem do computador: você tem o “in-put”; dentro do computador há um programa e esse programa é o meu porcesso criativo. A minha obra é o “out-put” de toda aquela informação; aqueles dados passaram por um programa que eu não controlo: é o programa da síntese literária, do simbólico. É como se eu vomitasse tudo que eu comi durante a vida, mas vomitasse numa forma artística, trabalhada, simbólica.

Existe o prazer de escrever?

Ah, mas enorme! É uma coisa engraçada porque é uma mistura de prazer com alivio. Volto à imagem da gravidez. Quando o texto já está pronto no inconsciente, ele tem que sair. São demônios! É como se você pegasse uma mulher no nono mês de gravidez e amarrasse as pernas dela. É um processo muito doloroso. Quando eu entro nesse frenesi, nesse estado mental de quase histeria coletiva, quando o texto vai se compondo, é um orgasmo; ao mesmo tempo é uma sensação de felicidade da ausência da dor de que Schopenhauer falava. Depois releio o texto algumas vezes, não com a intenção de modificá-lo, mas como um animal que lambe a cria depois de ter expelido o filhote. Eu fico lambendo aquela cria com um prazer imenso.