R.P.6. Dominó – Domino
DA «A OSTE DE NADA», Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981
DOMINÓ
O velho Ariosto Albuquerque era o rico proprietário do único Cartório de Ofícios e Notas da pequena cidade de Piraí, até meados de outubro de 1930, quando as tropas revolucionárias de Vargas subiram do Rio Grande e tomaram a Capital. Ligados por todos os laços à oligarquia agrária então derrotada, Ariosto Albuquerque teve seu cartório confiscado e cedido a um comerciante de bebidas. O velho não sobreviveu nem mesmo para acompanhar a sua própria miséria, e deixou como herança para a filha única Marieta, grávida de cinco meses, algumas dívidas, papéis velhos e um genro poeta e epilético, de sobrenome Castilho, que por sua vez a deixaria viúva quatro anos mais tarde, ainda desmamando um garoto de nome Herbert.
Mais ou menos por esta época, num bairro pobre e poeirento de Piraí, nascia um bebê prematuro e feio, vítima de um acidente obstetrício, misto de parto e aborto, da barriga de uma prostituta negra cujo nome ninguém mais se recorda. Cresceu o crioulo gordinho, mas cresceu pouco, sem atingir metro e meio: um roliço débil mental, folclore da cidade pelas suas risadas por tudo e por coisa alguma, risadas que varavam as noites, acordavam bebês e apavoravam os insones. Chamavam-no Bolota, e como não falava e não portava documentos, era impossível saber-lhe o verdadeiro nome. Assim o negro ficou sendo Bolota e apenas isto, motivo de chacota e sacanagens de crianças e desocupados, a compor com sua figura bisonha e idiota o bucólico quadro interiorano.
Dona Marieta ganhava algum dinheiro auxiliando na confecção de vestidos de noiva. Havia de três a cinco casamentos de classe média por mês em Piraí. A senhora custeou a duras penas a alfabetização de Herbert Albuquerque de Castilho, não porque ganhasse assim tão pouco, mas porque nesta fase de sua vida já se tinha viciado nas rodadas de dominó da Pensão Roma, apostando nas pedrinhas sempre mais que o razoável.
A vida de Bolota era bem mais simples. Nos intervalos em que não estava respondendo com gargalhadas a cascudos na testa, xingamentos ou eventuais pontapés na bunda, o quase anão limpava os vidros e a lataria dos táxis da Rua Direita, ao lado da estação Rodoviária, e em troca recebia gorjetas dos motoristas ou uma média de café com leite, oferecida no botequim da rodoviária e engolida em segundos, entre risadas vãs, com os olhos úmidos e gratos.
A vida de Herbert era um pouco mais complicada. O jovem alto e pálido, herdeiro da biologia tísica do pai, não passara mesmo da alfabetização. Tinha porém um temperamento histriônico, e disto tirava metade de seus rendimentos, trabalhando de dez à meia-noite como palhaço no puteiro Vista Alegre, de propriedade da velha cafetina Dona Neuza, que atendia desde recrutas em folga a caixeiros-viajantes, passando pelos comerciários, policiais, um gerente de banco freqüentador assíduo, até a histórica visita de um ex-prefeito da cidade de Vassouras.
As “meninas” recolhidas por Dona Neuza para a zona de meretrício compunham um mosaico de raças e tipos que estonteavam os “clientes”: louras, ruivas, morenas, mulatas de todos os matizes, cafuzas, sararás, negras e nigérrimas. Variavam ricamente na distribuição de ossos, carnes e gorduras nos corpos de aluguel, e tinham em comum apenas o fato de todas terem sido expulsas do lar paterno por terem engravidado no princípio da adolescência de algum dos tantos garanhões desdentados que as escondiam nos arredores.
Todas as noites, durante duas horas, o centro da grande sala do puteiro, rodeado de mesas repletas de garrafas de cerveja, onde os “clientes” acomodavam nas coxas as putinhas ávidas, transformava-se numa espécie de circo pornográfico, no qual o palhaço Simplício era a maior atração. Além dele, que fazia piruetas e dava cambalhotas com os culhões à mostra, contava anedotas sujas com grande graça e finalizava o número puxando de dentro das calças estufadas de cetim vermelho uma enorme cobra no lugar do sexo, oferecendo-a de mesa em mesa aos ofegantes senhores, havia a trepada do engolidor de fogo com a mulher barbuda, que numa das flamejantes vomitadas do parceiro quase perde a preciosa barba; havia o engolidor de espadas que, proeza maior que fazer passar pela garganta gládios e floretes, acabava por engolir até as bolas do saco o imenso órgão do anão Coleirinho, sob os aplausos e os brindes da platéia. O fundo musical do espetáculo era conduzido pelo “maestro” Borboleta, um velho remelento que babava sobre as teclas do piano, auxiliado por um jovem da Banda Marcial do Colégio Piraí, que batia velocíssimas baquetas no tarol, para aumentar as tensões dos momentos cruciais, e por um pistonista fanho de nome Washington.
A mistura de circo e lenocinio havia sido uma brilhante invenção de Dona Neusa, que promovia o relaxamento e a euforia dos “clientes”, em geral esgotados pelo dia de trabalho, facilitando com isto o espírito de sacanagem, o tesão irresponsável, e incrementando um pouco mais o consumo de cervejas, parte significativa dos lucros do cabaré circense Vista Alegre, orgulho e vexame de Piraí.
A outra metade dos rendimentos de Herbert vinha entre meia-noite e dez da manhã, enquanto trabalhava como motorista de táxi, num velho Citroen negro, no ponto da estação rodoviária. Os ônibus só começavam a chegar periodicamente a partir das sete da manhã, mas Herbert era o único motorista de plantão durante a madrugada em toda a cidade, e a ele acorriam no meio da noite os casais clandestinos, alguns enfermos crônicos, parturientes e enfartados de última hora, pagando-lhe sempre em dobro todas as corridas.
Herbert, ou Simplício, não havia sido educado pela velha Marieta para dirigir táxis e muito menos para ser palhaço de zona. A mãe lhe ensinara etiqueta e insistia em depositar no único rebento todas as esperanças de ver recuperada a fortuna que o ditador Vargas roubara dos Albuquerque. Herbert não correspondeu, o que lhe custou um medido desprezo da mãe, que se recusava terminantemente a tomar consciência dos ofícios do filho e a sequer imaginar de onde vinham diariamente as suadas notas que lhe garantiam a sobrevivência e lhe custeavam o nefando vicio do dominó. Para si próprio, Herbert não tirava mais que um quinto do dinheiro que arrecadava no volante e no picadeiro.
Dona Marieta era velha, alienada, e mais ou menos feliz. Herbert era engraçado, frustrado e profundamente infeliz. Seu contrato con a cafetina era severíssimo, e nem mesmo o Citroen era seu, mas do avarento dono da Papelaria Auriverde, que lhe cobrava os olhos da cara pelo aluguel do veículo. A ambos ele odiava muito, aos outros odiava um pouco, a Vargas remotamente.
E a vítima física e moral dos ódios do palhaço, seu saco de pancadas verbais e receptáculo exclusivo da sua ira genérica contra o mundo, era o doido Bolota, o bunda-inchada que noite após noite de todas as luas do ano sofria toda sorte de castigos e impropérios do branco Herbert, que lhe puxava as orelhas até sangrar ou lhe repetia em alto e bom som, por vezes rodeado de terceiros, que a marafona mãe do negro maluco ficara afamada pela largura do buraco do seu cu, que o cu da genitora do retardado jorrava esperma para o alto como um cano furado, e que só pelo cu a negra poderia ter concebido tamanha monstruosidade. Nestas horas, Bolota só fazia rir, como se fosse não dele, mas de seu pior inimigo, a orelha que ardia ou o tímpano que vibrava com as maledicências de seu verdugo. E quando parava de rir, o baixote corria ao Citroen, com sua gasta e parda flanela, e lustrava cuidadosamente os pára-lamas e o vidro traseiro do instrumento de trabalho de Herbert, como que agradecendo pela sádica atenção a ele dispensada.
No segundo domingo depois do carnaval, a cidade foi visitada por um bando de turistas arruaceiros do Rio de Janeiro, suburbanos de Inhaúma, que viajaram a Piraí especialmente para conhecer o Vista Alegre. Nesta noite não restou uma só mesa disponível para os freqüentadores locais. Dona Neuza estava exultante. Mandou dobrar o preço das bebidas e triplicar os dos orgasmos. Simplício quis começar o espetáculo mais cedo, pois havia combinado com o subprefeito de levá-lo com a amante, a ossuda Marivalda, a um motel da cidade vizinha à meia-noite em ponto, e trazê-los de volta às cinco, por quantia polpuda. Seus argumentos, porém, não convenceram a cafetina. Ele era a atração principal, e devia apresentar-se por último, como de praxe, mormente em se tratando de noite tão especial. E que fizesse rir os turistas até estourar-lhes as tripas, ordenou a megera. Não restava a Simplício senão obedecer.
Sentou-se defronte do espelho do camarim improvisado, o quarto da puta Amália, e pôs-se a maquiar-se, pintando de branco o rosto, o grande círculo vermelho em torno da boca, as sobrancelhas altas e o azul nas pálpebras, a bolinha rosada na ponta do nariz. Pensava estrangular um por um os velhinhos que lhe extorquiam através do vício da mãe, nas rodadas de dominó da Pensão Roma. Indiretamente viviam todos às suas custas, aproveitando-se de Dona Marieta, que quase sempre perdia por não saber fazer contas direito e ser má jogadora, mesmo após duas décadas escolhendo pedrinhas negras e as colocando em fila. Não sabia qual dos males, o pior. Se a ditadura de Vargas ou a merda do dominó.
Completou os preparativos, encaixando a careca, colando a borracha na testa, e contornando os culhões com a falsa e obscena serpente. A esta altura, já escutava os berros e uivos do povo a vibrar com o número da contorcionista, que de tanto vergar a cabeça para trás das costas, enfiava a própria língua por inteira na vagina.
Era chegada a sua hora. Simplício derramou pelo esôfago meio copo de cachaça pura, prendeu a respiração e entrou no salão, disposto a realizar o mais brilhante espetáculo de sua carreira de bobo de putaria.
Assim o quis, e assim o fez. O público carioca delirou de tal forma com as suas palhaçadas e invencionices, que Simplício foi obrigado a interromper as anedotas por três vezes para pedir que não atirassem cascos vazios de cerveja para o alto, pois o Vista Alegre era uma casa para caralhos duros, e não para cabeças quebradas.
Desesperado com o horário, o palhaço teve ainda que bisar várias vezes o número da cobra genital para que o deixassem por fim abandonar às carreiras o puteiro, correndo pelas ruas desertas, meia-noite e meia, à procura de seu Citroen. Compromisso com o subprefeito era coisa séria, seríssima… E lá foi Simplício, disparado atrás do casalzinho, sem ter tido tempo sequer para desfazer a maquiagem.
Chegou ao lugar combinado, esperou, olhou em volta, esperou, buzinou, esperou, e nada. Talvez tenham tomado outro táxi… Mais provavelmente, desistiram da aventura. O melhor a fazer seria aguardar no ponto da rodoviária. Quem sabe os dois aparecem camuflados por lá…
Estacionou o carro e pensou em tirar aquela roupa ridícula de palhaço ali mesmo, mas não havia o que vestir, sua calça e camisa tinham ficado no Vista Alegre, e além do mais, a luz era pouca, quase nenhuma. Na penumbra, pôde apenas divisar o vulto mirrado aproximando-se, e nele reconhecer pelas risadas o doido Bolota.
Mais que a tudo e a todos na Terra, Simplício odiava as risadas, que ecoavam na sua razão como um pesadelo repetitivo e cruel. Bolota gargalhava do jeito dos cariocas do cabaré, até mais forte, só que o expediente de Simplício como palhaço já havia terminado. Ele agora era Herbert, o motorista. Olhou-se no espelho retrovisor. Ele agora não sabia mais quem era.
Saiu do carro e deu um chute na cara de Bolota que o deitou no chão, e então cuspiu, escarrou várias vezes na cara do negro. Bolota ria. Agarrou o negro pelos ombros e desferiu-lhe joelhadas no estômago, pisou-lhe os pés com vontade, pulou sobre eles. O retardado ria mais, ria de dor e de loucura, ria de tudo, ria dele. O palhaço deu socos em seu pescoço, seguidos, potentes, enquanto sussurrava que o fim do negro seria acabar com o cu tão cheio de porra quanto o da mãe dele. O negro gargalhava alto.
Simplício esgotou-se. Suas mãos doíam e sua fantasia estava respingada de sangue. Encostou-se no carro e debruçou-se sobre o capô. Bolota, mais que depressa, procurou levantar-se, e puxando sua flanela ensebada, pôs-se a lustrar o Citroen. O palhaço sabia que seria perda de tempo pedir ao doido que parasse com aquilo. Bolota não entendia nada, não compreendia… Apenas sorria, ensangüentado, enquanto tentava fazer de cada pára-lama um espelho.
Simplício entrou no carro e ficou a observar o negro e a pensar na mãe de ambos. Melhor para o bobo não ter dado à mãe o desgosto de conhecê-lo. Quanto à dele próprio, antes tivesse fodido com Vargas!
A cabeça lhe doía. Estava tonto e confuso. Sentia a ressaca de sua própria violência. O palhaço encostou a falsa careca no volante, abraçou-o e dormiu.
Bolota lustrou os quatro pára-lamas enquanto Simplício dormia. Então torceu a tampa do tanque de gasolina, guardou-a no bolso, e do mesmo bolso retirou uma caixa de fósforos. Enfiou a flanela no tanque e pôs fogo na beiradinha do pano. Afastou-se, e segundos depois assistiu à maior explosão já ocorrida na cidade. Uma enorme carcaça negra em chamas, o Citroen, cuspindo fogo por todos os buracos. Dentro dele, o motorista, o palhaço Simplício e o promissor Herbert Albuquerque de Castilho.
Os turistas cariocas chegaram bêbados à rodoviária, trocando perna por perna, e viram a fachada branca imaculada da igrejinha iluminar-se de vermelho vivo. Às seis horas da segunda-feira sairia o primeiro ônibus Piraí-Rio. Era noite ainda. Os cariocas olhavam o fogo meio que fascinados, e de tão bêbados acabaram cutucando-se uns aos outros e rindo, acompanhando as gargalhadas convulsivas de um crioulo baixote, com jeito de maluco, que debaixo da marquise do boteco parecia estar assistindo ao melhor quadro da comédia do Vista Alegre.
La tradizione di Dominó, realizzata da Antonello Piana, è consultabile sul sito della rivista “Sagarana“