R.P. 1. Carne-seca, ritual e perfídia
DA MUAMBA, RIO DE JANEIRO, ANIMA, 1985
CARNE-SECA, RITUAL E PERFÍDIA
Puf. Puf.
Vamos carrinho. Não pare aqui não. Ande que eu te faço uns agrados. Aqui é a sola do mundo, o oriente esquecido, ouviu, meu carrinho lindo? É o miolo do Sertão do Cariri. Entre Angicos e Mossoró, e sabe Padim Ciço mais o quê. Taperebá, Ubicuí e Poranduba Mirim. Funciona, meu coraçãozinho de lata, meu saco de bobinas, minha santa metalurgia… Funciona, que eu te lubrifico. Passo graxa e amor no teu escapamento. Mas não me deixe aqui, ô quatro-rodas, debaixo deste sol de meio-dia…
Puff…
Não! Oh, vida, oh, céus, oh, raios… Morreu a criaturinha. Filho de uma linha de montagem. Obsolescência programada, você me deixou a pé na caatinga, sem sombra, sem mato e sem cachorro…
Saio do carro. Diante de mim, atrás de mim, uma infinita faixa negra a perder-se nos horizontes, un ínfimo trecho entre os milhões de metros de chão de asfalto que cortam este brejo endividado.
De um e de outro lado, um oceano de galhos secos entranhados, esqueletos de vegetais, greve de vida, mãos ossudas, pardas e odientas a cortar o ar asfáltico com unhas e espinhos. Xique-xique mela-mela. Chão gretado, coagulado. Sede de mandacaru. O sol come que visto do planeta Mercúrio. Não é sol, é Sol. É forte demais, é SOL.
Imenso labirinto sul-americano. Rede de estradas de rodagem, medalhas de piche, encimadas por distâncias irreais e placas pra Brasília. A leste, a sudoeste, Brasília a tantos quilômetros, a quantas megamilhas daqui. Cidade-fantasma do oeste brasileiro. Percevejo no mapa. Tachinha-monumento. Obelisco horizontal. Cria de uma febre federal. Falácia, falsete e falcatrua.
Pensei em abrir o capô do carro e checar o defeito. Talvez merecesse uma intervenção cirúrgica. Mas o doutor aqui é inábil para porcas e arruelas. Seria a transmissão ou o platinado? A bomba ou o carburardor? Os cabos ou as velas? A bobina ou o infortúnio? O cabeçote ou a fatalidade? Não, obrigado. Não vou especular sobre as entranhas das máquinas. Deixo isso para os trintões obesos da classe média emergente, entre a oitava e a nona Brahma dominical.
Abandono o carro no acostamento com as suas portas abertas. De longe, parece crucificado. Adianta caminhar ao longo da rodovia? O asfalto fervente e pastoso gruda e derrete a sola do meu tênis. Não há esperança de carro ou caminhão naqueles ermos. Que outro louco-de-pedra-sabão se arriscaria? Aquela estrada parecia ter sido construída só para fazer notícias políticas nos jornais locais. Ligaria talvez uma praia remota, Paracuru ou Baía da Traição, habitada por rendeiras cafusas a dançar merengues com jangadeiros caboclos, a um centro do deserto seco, Piripiri ou Quixeramobim, habitado por ossos.
Saí da estrada e embrenhei-me na caatinga do sertão. A vegetação hostil arrancava-me pedaços da pele nua. Os espinhos eram muitos, e vinham de todas as direções. Será que deserto também é ecológico? Deve ser, senão a madrastinha natureza não tinha espalhado por aí a geografia da sede. Mas os ecossistemas destruídos não criam novos desertos? Não seriam os buracos-quentes o corpo de delito da própria natureza, a ser necropsiado por cangaceiros e helicópteros da F.A.B.? Ouço um chocalho entre os galhos mortos. Uma cascavel se manifesta feliz com o seu habitat. Chocalho de volta para ela. Ela responde. Emoções cascavélicas no ar.
Continuo a andar por horas, sempre a fugir dos cactos negros, os perigosos. Tenho sede, tenho fome, tenho ânsia de amar. Urubus sobrevoam em círculos. Sinto cheiro de carniça. Procuro em volta, nada. As aves me acompanham. Percebi. O animal morto sou eu.
Continuo a caminhar, escalavrado. Não há par de juazeiros que me faça sombra. Não há folha e não há vento. Daria tudo para ver a presença da mão do homem naqueles ermos. Mas não há presença de coisa arquitetada. Nem tapera nem mocambo nem maloca nem palhoça nem choupana nem casa-grande & senzala. Nada. Nem ruínas fenícias nem fragmentos de um disco-voador. Há quem sabe o inconsciente coletivo de uma civilização extinta, spray de mistérios no ar.
Novamente o chocalho da cascavel. Intuí que aquela seria uma boa direção a seguir. As serpentes têm lá os seus veneninhos, mas não são de deixar um companheiro aflito. Estabelecemos uma linha direta de comunicação, de sistema-réptil para sistema-réptil, e ela me conduziu para o leito de um rio seco. Larga faixa de areia grossa e seixos rolados, estrada cósmica como os canais de Marte, serpenteando em direção a um oceano impossível.
O meu tênis já havia arrebentado, e assim joguei fora os dois pés e fiquei só com os cascos sobre o chão. O SOL curtia o meu couro, fazia com que de meu lombo se desprendesse uma fumaça malcheirosa, uma bruma catinguenta era deixada no meu rastro. Sede de comer lama. Fome de autofagia. Espírito reduzindo-se ao básico, instinto ocupando todos os espaços, inundando de ritual e de perfídia cada um dos meus neurônios.
Leito de rio seco, para muito além de ti há uma poça de água limpa. Água a minar das pedras sertanejas, a borbulhar mais alto que o chocalho das serpentes. É para lá que me dirijo, sei disso. Sigo o olfato secreto do hidrogênio.
E quando lá chegar, caveiras de gado azarado, escutai o meu relincho! Beberei daquela água com o longo pescoço seguro por quatro patas bem fincadas. Então sacudirei a crina à brisa do inferno, escoicearei minha própria sombra e sairei em cavalgada livre, desgovernada.
O asfalto não há de cobrir o pasto. O pasto e eu, potro selvagem, sem rédea, sem oeste e sem Brasília.