Torpalium – Nei Duclós

Julio Cesar: contrariando as previsões ou a Santa Inquisição (também conhecida como Santa Hoerst)

É preciso rever urgentemente as teses sobre a juventude brasileira. Até hoje, as gerações que passaram pela experiência do populismo consideram inevitável a alienação das pessoas que, na infância, encontraram a Revolução de 64 já estabelecida no poder. O costume da geração anterior, principalmente depois do fracasso de 1968, tem sido o de lamentar, acusar ou ironizar a falta de “consciência política” dos filhos da reforma do ensino, do vestibular unificado e dos costumes alimentados pelas multinacionais.
Essa má-vontade, entretanto, é mais uma obsessão de quem ainda não conseguiu encarar a derrota política como um desafio. Esses – encastelados no comentário amargo, na rotina ideológica e na autopreservação – não podem admitir que foram exatamente as formas viciadas de pensamento e de ação que os tornaram impotentes diante dos acontecimentos.
Apesar do niilismo disfarçado dos críticos da juventude brasileira, as crianças “alienadas” de repente invadem as ruas para difundir sua literatura, forçando a queda dos esquemas ultrapassados da vanguarda elitista e abrindo brechas no até então indevassável muro editorial.
Logo depois, a mesma juventude, contrariando todas as previsões, sai para a rua denunciando a elitização do ensino, o custo de vida, e pedindo anistia para os presos políticos. Não foram, certamente, entre os apóstolos da derrota que os meninos reuniram forças para enfrentar, de peito aberto, um dos piores momentos políticos da nossa história.
Enquanto isso, os amargos donos da verdade e das fórmulas imutáveis da arte permanecem de olhos fechados a um possível renascimento cultural que, pressionado pelo silêncio excessivo, ensaia seus primeiros passos num novo tipo de literatura, engajada e participante. Uma literatura sem os conceitos viciados de “alienação” ou “consciência”. E que não é escrita por eliminação, mas por incorporação, onde o sonho, o non-sense, a denúncia social, o humor e o lirismo estão unidos pela mesma realidade.
Escritores como Julio Cesar Monteiro Martins – que em 1964 tinha apenas nove anos – surgem como uma resposta e um desafio. Principalmente se for levado em conta que ele, dominando os recursos do realismo social, é capaz de, ao mesmo tempo, destruir o esquema literário que possa surgir dessa facilidade. Neste livro, propositalmente, Julio Cesar coloca contos como Caso de Fome, Feriado Nacional e Na Esquina da Prefeitura – de um realismo linear e chocante – juntos com Santa Hoerst, Toccata e Fuga e A Expedição – onde o absurdo é um exercício lúdico, que se desenvolve quase poeticamente, em cima da valorização da palavra, que puxa o enredo livremente.
Além disso, é surpreendente que Julio Cesar seja capaz de fazer crônica – e às vezes até comédia – de costumes. É o que acontece em Linho Branco, Casos de Amor e Torpalium. Enfocando a vida dos aposentados ou dos vendedores de drogas, ele jamais trai a veracidade do enredo, o que é difícil até para escritores com mais experiência. Nessa linha, surge Não Aconteceu Em Liverpool, uma história que só alguém familiarizado com os costumes das novas gerações seria capaz de relatar.
A Grade Cimento, A Vida É Assim e O Negócio são contos sobre o cotidiano, mas o desfecho e a própria construção do enredo os coloca fora de suas aparentes dimensões. Essa desestruturação – que culmina na louca história de Santa Hoerst – passa ainda por outras experiências, como O Homem que Queria Passar, Atrás da Estante ou Doktor MacBoris’s Experience.
Nesses contos, surgem de forma alegórica, a violência ideológica e física do mundo moderno e suas armas: a ciência, a hierarquia e a paranóia.
E para quem acredita que a propaganda oficial é capaz de tudo, Caso de Polícia – um conto sobre a prisão e o assassinato de um inocente – é mais uma prova de que, por mais eficiente que seja o sistema em seus mecanismos de poder, jamais deixará de despertar indignação e revolta, já que a experiência cotidiana do povo não pode permanecer por muito tempo exilada da consciência coletiva. Por mais forte que seja a censura..
O papel da juventude, nas últimas décadas, tem sido o de desatar alguns nós. A razão viciada em esquemas ultrapassados, de tempos em tempos é sacudida por movimentos expontaneamente nascidos das novas realidades sociais. No Brasil, a liberdade de pensamento sofre não só com a censura oficial, mas também com a falsa cultura e o reacionarismo disfarçado dos que deveriam lutar contra o obscurantismo. Infelizmente, a única “resistência” cultural tem sido a de permanecer nos mesmos clichês. Esse vicio –  criador incansável de vítimas, mártires, heróis e saudades – está para ser rompido mais uma vez, não só pela juventude brasileira, mas por todos aqueles que mantiveram os olhos livres, abrindo caminho sozinhos ou esperando o renascimento.
Este livro de Julio Cesar Monteiro Martins, de vinte e um anos, nasce dentro dessa perspectiva histórica. Os meninos que provocavam desprezo ou ironia quando mascavam chicletes ou montavam conjuntos de iê-iê-iê, estão dando agora um recado com a seriedade comprometida com a vida e suas múltiplas manifestações. Sem o ranço dos que, perigosamente, só se comprometem com o passado, a surdez e os preconceitos.