Supplementi

A oeste de nada

DA «A OSTE DE NADA», Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.

A OESTE DE NADA

“Ai dos que decretam leis injustas,
dos que escrevem leis de opressão,
para negarem justiça aos pobres,
para arrebatarem os direito
aos aflitos do meu povo,
a fim de despojarem as viúvas
e roubarem os órfãos.”

(Livro do profeta Isaías)

“Atendei, agora, ricos, chorai,
lamentando por causa das vossas desventuras,
que vos sobrevirão.
As vossas riquezas estão corruptas,
as vossas roupagens comidas de traças,
o vosso ouro e a vossa prata foram
gastos de ferrugens e a sua ferrugem
há de ser por testemunho contra vós mesmos
e há de devorar, como fogo, as vossas carnes…”

(Carta do Apóstolo Tiago)

O gordo de terno se levanta e encara o jovem nu, com o olhar cinicamente científico e determinado:

– Muito bem, padre. O senhor sabe por que foi convidado a vir até aqui?

– Não. Eu não sei.

– É claro que sabe, padre. Vamos, eu não tenho tempo a perder. Vou repetir. O senhor sabe por que está aqui agora?

– Não, eu não sei. E gostaria de dizer que não fui convidado a vir até aqui. Fui forçado a vir até aqui.

O gordo se dirige a um auxiliar:

– Vocês usaram de força para trazê-lo até aqui?

– Não, senhor. Ele veio por seus próprios pés – respondeu o guarda.

– Então, padre. O senhor não foi forçado a vir até aqui. Eles apenas foram ajudá-lo a encontrar o caminho.

– O senhor sabe que eu conheço muito bem o caminho até aqui. Já estive aqui muitas vezes, e nós já conversamos na sua sala.

– Sim, é verdade. Tenho anotadas todas as suas reclamações. Estou até pensando em fazer um caderno especial pra elas.

– É, mas parece que elas ficaram só anotadas. Há quatro meses eu estive aqui, e trouxe testemunhas que viram um de seus auxiliares violentar uma índia de nove anos de idade. Ele foi ajudado por um colega, e muitas pessoas, não apenas índios, mas colonos da fazenda também, viram tudo. E o que foi feito até agora?

– Cale-se! Aqui quem faz as perguntas sou eu. Mas eu vou responder à sua. Nós combinamos que, se o senhor não relatasse o fato aos jornais ou aos seus superiores, eu tomaria as devidas providências, não foi?

– Sim. Mas que providências foram tomadas? O que foi feito? O homem que violentou a menina não está nesta sala, mas eu o vi ontem mesmo, parado em frente ao Bar Central.

– Então, quer dizer que o padre anda observando os meus auxiliares? Isso é uma coisa muito feia para um religioso como o senhor, padre.

– Eu não ando observando nada. Esta vila tem pouco mais de dois mil habitantes. São seis ruas e uma praça, onde fica o bar. Como eu poderia não vê-lo?

– Bem, eu sinto muito, mas já verifiquei tudo. O meu auxiliar não teve culpa nenhuma no incidente. Ou melhor, acidente. A menina escorregou, enquanto os outros índios corriam com os tiros, e se machucou na queda. Eu perguntei aos outros rapazes que estavam com o meu auxiliar no momento, e eles disseram que não viram nada disso que foi espalhado por aí. Puro boato.

– E o senhor acredita nisso?

– É claro que sim. Como poderia deixar de acreditar nos homens que trabalham comigo? Se eu não tiver confiança neles, para desempenhar as minhas funções, então em quem eu vou ter? Compreendeu bem isso, padre?

– Receio que sim.

– Além do mais, aquelas testemunhas que o senhor trouxe não são boas. Eu deixei passar uns dias e fui interrogá-las novamente. Elas não disseram coisa com coisa. São todos uns capiaus broncos, que não têm a menor noção do que estão falando. Eu me admiro o senhor, um homem civilizado, letrado, se misturar com essa gentinha deste fim de mundo. Bem, mas isso não é problema meu. Padre Mauro, eu havia lhe feito uma pergunta. Se o senhor sabia por que estava aqui. O senhor não me respondeu. Pois bem, eu mesmo vou responder. Padre Mauro… Antes de qualquer coisa, eu gostaria de dizer que eu tenho um grande respeito pela sua pessoa. O senhor deve saber que é um homem muito querido por todo o povinho desta região. Além do que, embora eu não concorde com a maior parte das coisas que o senhor diz no seu sermão, minha mulher e meus dois filhos, que como o senhor bem sabe nunca faltam à missa de domingo, têm pelo senhor um grande apreço.

– O apreço é mútuo. Mas eu gostaria que o senhor entrasse logo no assunto. Por que me fizeram tirar a batina e entrar nesta sala assim, quase nu?

O gordo se dirige a um outro guarda, que vigiava a porta sonolento:

– Vocês tiraram à força a roupa do padre?

– Nós falamos com ele que seria melhor que ele mesmo tirasse. mas ele não quis e nós…

– Sim, eu já sei o resto…

O gordo afrouxa o laço da gravata e senta na beirada da mesa:

– Padre Mauro, o senhor vai compreender. O senhor tirou a roupa apenas por uma questão de função social. O assunto que eu tenho a tratar com o senhor não é referente ao Padre Mauro, mas ao cidadão Mauro. Esta é uma conversa de homem para homem, não de um cristão devotado como eu para um representante da Santa Igreja. Aliás, deixe-me dizê-lo que a batina não lhe cai bem. O senhor tão jovem, um rapaz tão simpático e inteligente… É realmente um desperdício.

– O cidadão e o padre são a mesma pessoa, que está aqui sentada na sua frente, esperando uma explicação pra tudo isto. O padre não ficou lá fora com a batina.

– Bem, eu só espero que o senhor não esteja sentindo muito frio… O senhor está com frio, padre?

– Não, eu estou querendo ir embora daqui. Fala logo o que tem pra falar.

– Se o senhor não está com frio, padre, por que tremem tanto as suas mãos?

– Ora, acabe logo com isso.

– Padre Mauro, ou melhor, cidadão Mauro, graves acusações pesam sobre seus ombros. Há muito o senhor vem sendo observado, e o seu comportamento anda cada vez mais estranho para um homem da Igreja.

– O que você quer dizer com “estranho”?

– Que o senhor anda metendo o nariz onde não deve. Que o senhor, desde que chegou aqui, não restringiu suas funções à paróquia local, como era de se esperar, e como sempre foi com todos os padres deste município. O senhor logo se juntou àqueles rapazes estudantes que estavam fazendo pesquisas sobre os índios, e atravessava a noite em longos bate-papos, não é verdade o que eu estou dizendo?

– Sim, e daí?

– E daí que os estudantes voltaram para suas casas e apartamentos confortáveis, no Rio ou em São Paulo, e o senhor ficou aqui, tentando fazer sozinho o que eles gostariam de ter feito, mas não tiveram coragem, não é mesmo?

– Eu nunca estive sozinho. Deus sempre esteve ao meu lado. Além disso, eu não estou tentando fazer o que eles não tiveram “coragem” de fazer. Eles voltaram porque vieram mesmo pra passar pouco tempo e lá eles têm suas famílias e seus afazeres. Eu fiquei porque vim pra ficar, e porque esta é a minha função como sacerdote.

– E qual é a sua função como sacerdote? Ser um agitador? Colocar minhocas na cabeça dessa pobre gente que vivia tranqüila no seu trabalho? É essa a função de um sacerdote? Querer que esses selvagens, que não passam de animais com forma de gente, tomem as terras dos fazendeiros?

– Isto que você está falando é um absurdo! Eu jamais disse a índio nenhum que invadisse terras de alguém. Eles estavam sendo invadidos. Eles não tinham mais pra onde recuar. Onde é que você quer que eles vivam? Embaixo da água do rio? Nos galhos das árvores? Há apenas vinte anos eles eram os donos de toda esta região, inclusive de onde nós estamos pisando agora. Eles foram expulsos, espancados, mortos a bala e a faca. Suas mulheres foram curradas, assim como suas filhas e seus filhos. Nenhum destes seres humanos foi respeitado. os homens como vocês violentaram suas mulheres e espalharam a gonorréia, a sífilis, que um homem como eu ou você cura com antibióticos, mas os índios simplesmente morrem. Todo mundo sabe que vocês colocavam roupas sujas, empesteadas de varíola, nas trilhas de caça. E o sarampo, quantos haviam morrido de sarampo pouco antes de eu chegar?

– Foi ótimo o senhor me dizer tudo isto, padre, O senhor está se comportando melhor do que eu esperava. Acho  que agora não preciso mais explicar por que o senhor é um agitador. O senhor mesmo o disse. O seu comportamento foi típico, padre. Essa exaltação de ânimo, essa violência nas suas palavras… Tudo isto é típico, padre. Não há como negar.

– Violência? Mas eu estou apenas tentando…

– O senhor não está tentando nada, padre. O senhor está fazendo. O senhor está me convencendo cada vez mais de que, por trás daquela aparência inocente, de homem voltado para Deus, se escondia um elemento perigoso, nocivo à sociedade. Onde está Deus nisso tudo? Acho que a sua fé desmoronou há muito tempo, padre, se é que um dia ela existiu…

– Cristo pregou a igualdade entre todos os homens. Nunca isso foi tão esquecido, tão contrariado, quando nesta terra perdida a leste de coisa nenhuma e a oeste de nada…

– Padre Mauro, Cristo pregou também que devemos amar a Deus sobre todas as coisas. Sobre todas as coisas, entendeu, padre?

– Eu amo a Deus amando o meu próximo.

– Ah, e o seu próximo são esses índios sujos e ignorantes? Belo próximo o senhor arranjou… Deles, o senhor deveria querer distância. Eles são perigosos. São entes sem nenhuma consciência. Eu, por exemplo, prefiro me manter longe desses porcos do mato.

– Quem dera se ao menos isso fosse verdade.

– Eu nunca me envolvi com esses animais, senhor padre. Minha vida é de casa para o trabalho, do trabalho pra casa. O senhor nunca me viu metido com essa canalha, viu Padre Mauro?

– Não, mas vi seus homens. Eles estão sob as suas ordens, então você sempre esteve indiretamente ligado aos índios.

– Ora, indiretamente… Isso é um argumento meio fraco, não é padre? O senhor tem imaginação pra mais que isso. Bem, mas vamos ao que interessa. Aquele seu protesto, do último dia vinte, pelos jornais de São Paulo, irritou muita gente. O senhor sabe disso, padre? Muita gente importante, não só daqui, mas de lá também.

– Dois índios foram mortos a bala no último dia dezesseis.

– A princípio, isto não pode ser verdade. Os homens têm ordens para atirar para o alto, com o intuito de afugentá-los, nada mais. Se nós não dermos um sustinho neles de vez em quando, eles acabam tomando conta de tudo, até da casa que nós moramos.

– Para o alto? Então, como você explica as balas nos corpos daqueles dois homens?

– Eu não vi bala alguma, senhor padre.

O gordo de terno olha enfastiado para um auxiliar:

– Você viu?

– Não senhor.

– Ele não viu nada…

Chama o outro guarda, o sonolento:

– E você, viu algum homem, ou melhor, índio, baleado?

– Não vi não senhor.

– Está vendo, padre? Ninguém viu isso pro aqui. O senhor anda imaginando coisas que não existem. E o pior. Anda escrevendo e publicando as suas alucinações. Isso não é nada honesto, padre. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa: o senhor é brasileiro?

– Sou.

– Nasceu aqui? Se criou aqui?

– Me criei aqui.

– E o senhor não se preocupa nem um pouquinho com a imagem do seu país?

– A imagem do Brasil deverá ser aquela que ele construir a partir de si mesmo, a partir da verdadeira e diária opinião do povo que vive e sofre este país. Agora, mais que nunca, é importante que todos saibam o que acontece aqui.

– Sim, claro… Todos podem e devem saber o que acontece aqui. Mas, padre, o que acontece aqui, neste país, é aquilo que o senhor descreve em seus artiguinhos? O senhor é novo, mas nem tanto. Deve lembrar-se do que era esta terra há vinte anos atrás. O senhor teria demorado meses pra chegar até aqui, padre. Sabe por quê? Porque não havia estradas. O senhor deve lembrar-se que pouco antes disso, não havia como comprar comida, embora comida nunca tenha faltado, graças a Deus, porque esta terra é abençoada. Havia a comida, mas não havia como comprá-la. Sabe por quê, padre? Porque não havia ordem. Era o império da baderna. O senhor se lembrou de dizer estas coisas nos jornais? Claro que não. Estas coisas o senhor não diz. Não interessa, não é padre? Só o que é negativo interessa. O senhor, como religioso, prega a paz não é mesmo? Pois quando o Brasil teve tanta paz quanto nos últimos dez anos? Não, ninguém vai incendiar este país…

– Isto não é paz. Isto é apatia. É medo.

– Medo de quê, padre? Os homens de bem não têm medo. Eles não devem nada. Estão em paz com as suas consciências. Só quem fez algo de errado pode ter medo. Quem anda na linha não precisa temer coisa nenhuma.

– Quem anda na sua linha.

– A linha é uma só. É a linha dos homens de bem. Dos homens que querem o desenvolvimento, em vez do atraso. A ordem, em vez da anarquia. É essa a linha, padre. Pelo menos é a que eu conheço. E a sua? Qual é a sua linha?

– Você não entenderia.

– É claro que não. Eu não tenho os seus estudos, a sua cultura, não é, Padre Mauro? Eu sou um homem ignorante para o senhor. Um barnabé, um joão-ninguém. Mas eu tenho uma coisa que o senhor não tem, meu caro amigo. Eu tenho vivência. Eu tenho quase o dobro da sua idade. Conheço o mundo e as pessoas. Conheço um desordeiro de longe, mesmo disfarçado de padre. O agitador traz nos olhos sua condição de agitador. O brilho é diferente, eles se mexem mais. Acho que até o cheiro é diferente.

– Diga logo o que está querendo. Eu estou cansado.

– Ah, está cansado? O senhor está cansado? Mas não costuma se cansar com pouca coisa, não é? Não se cansa quando anda de fazenda em fazenda, para agitar os colonos, para dizer as suas mentiras, para convencê-los de coisas que eles morreriam sem saber, não é?

– Mas como “de fazenda em fazenda”, se nesta região só existen duas fazendas, a do Campanário e a Fazenda Velha? Além disso, aqui não existem colonos, aqui existem escravos. Homens que trabalham a troco de uma pouca comida e de um casebre que eles mesmos constroem. Tudo o que recebem, depois de um mês de trabalho de sol a sol, fica no próprio armazém da fazenda. A troco de quê? De fubá, de farinha, de um corte de charque, arroz e remédios quando dá, e nunca dá, não é mesmo?

– Se o senhor acha assim, então por que não compra uma fazenda, pra conhecer o outro lado da história? O senhor lida com santinhos, padre. Não sabe o que é ter que aturar aqueles peões estúpidos, aquela gente doente que não serve para o trabalho, e que no fim do mês não produziu nem para pagar o que come.

– Mas isso que você está falando é completamente imbecil…

– Imbecil, não é? Então vamos ver se o senhor também acha isto aqui que eu vou dizer “imbecil”. Eu recebi uma ordem superior para interromper o seu trabalho. Aliás, não foi exatamente o seu trabalho, compreende, padre?

– Mandaram você me matar… Ah, essa é boa…

– Foi você quem disse. Mas não significa que eu esteja disposto a isto. Não, eu absolutamente não estou. Eu não sou um assassino, além do que, eu tenho um grande apreço pelo senhor, como o senhor já sabe, e a última coisa que desejo no mundo é ter que usar de violência, principalmente em se tratando de um religioso, e este religioso sendo o senhor, Padre Mauro.

– Deixa eu ver se eu entendo o que você está querendo me dizer… Você recebeu uma ordem superior, certo? A ordem é: liquide o Padre Mauro. Mas é uma coisa muito séria matar um padre. É muita responsabilidade, não é? Então, se tudo for descoberto depois, os seus superiores podem responsabilizar você, que é o menor, o menos graduado, como o bode expiatório da trama. E eles tiram o corpo fora, não é isto? Bem, por outro lado, é uma ordem taxativa de cima, que não pode ser contrariada. Então, você tem que tomar uma decisão sobre o que fazer comigo, não é assim?

– É… Não deixa de ter uma certa lógica. Mas o que é que nós estamos fazendo desde que o senhor chegou aqui? Dialogando, não é? Dialogando de igual para igual. O senhor apresenta seus argumentos e eu apresento os meus, livremente. Sabe por quê, padre? Porque eu também me modernizei. Hoje eu sou um homem de diálogo, de mão estendida à oposição. Posso não ser um orador brilhante como o senhor, mas prefiro o diálogo a qualquer outro método.

– Mas não deixa de usar os outros métodos, não é?

– O senhor está exigindo muito, Padre Mauro! Eu estou lhe tratando, por enquanto, com a maior cortesia e respeito. O senhor está abusando da minha paciência. Se o senhor não quer o diálogo, não venha reclamar, porque a escolha é sua, e não minha.

– Que diálogo é esse?

– O único possível com uma pessoa intransigente e irracional como o senhor, Padre Mauro.

– Escuta, você quer me propor algum negócio, não é? O que é que você quer?

– Não. Não exatamente um negócio. Seria mais um… acordo. Um acordo de cavalheiros entre nós dois.

– E o que é esse acordo?

– O senhor abandona esta região para sempre, o mais rápido possível. Hoje mesmo, por exemplo. Não comente nada, nunca, do que foi conversado aqui. Digamos que o senhor não teria se adaptado ao clima, aos mosquitos, compreende? E assim, usando da nossa imaginação criadora, nós teremos evitado uma situação desagradabilíssima. Ficamos combinados, padre?

– Você está é louco! Eu não não vou abandonar essa gente. Essa é a minha gente e também é o povo de Deus. Abandoná-los será abandonar a mim mesmo. Meus pés criaram raízes aqui nesta prelazia, e não será você, com suas ordens secretas, quem vai arrancá-las. É muita pretensão sua. É pretender demais, meu irmão.

– Pois muito bem. Eu sou um homem muito tolerante. O senhor sabe, não é?

– Isso é completamente fora de propósito.

– Então, eu vou dizer-lhe algo que virá bem a propósito. O senhor sabe que dentro de um mês ou pouco mais, todos esses índios, que o senhor chama de “minha gente”, serão transplantados para uma reserva indígena, onde ficarão muito bem acomodados, sem ninguém pra perturbá-los? Assim, o senhor poderá ir-se embora tranqüilo, porque logo depois eles desaparecerão daqui.

– Eu vou para onde eles forem. Eu vou para o inferno, se vocês os mandarem pra lá. E além disso, você está cansado de saber que estas reservas indígenas não passam de uma forma disfarçada, institucional, de genocídio. Estes homens vivem aqui há centenas de anos, e toda a sua cultura foi desenvolvida numa relação direta com essa terra, as plantas e os animais daqui. Há muitas gerações eles sabem onde encontrar tudo o que precisam pra sobreviver, e é nisso que se fundamenta a cultura deles. A partir do momento em que eles são transplantados daqui, como vocês dizem, eles perdem todos esses vínculos, vão para uma região completamente estranha, nas condições que os brancos determinam, misturam-se com tribos que têm um modo de vida completamente diferente, aculturam-se rapidamente e então são destruídos com muito mais facilidade.

– Creio que só o senhor, padre, com essa sua cabeça maluca, pensa deste modo. É só ler os jornais e as revistas. A opinião pública, que o senhor tanto preza, não recrimina as reservas indígenas. Até muito pelo contrário, ela as aprova totalmente. Acham que é a solução ideal, como aliás eu também acho, e só o senhor não acha, Padre Mauro.

– Eles não sabem. Não compreendem. As pessoas não param para pensar seriamente no assunto. Vocês falam em remover índios para as reservas, como falariam em isolar um vírus em tubos de ensaio. Descobre-se rapidinho o antídoto e pronto. Foi exterminado todo o mal. Não é assim? Não é esta a “solução definitiva para a questão indígena”?

– Mas quem falor em exterminar, padre? Quem? Quem falou? O senhor falou, padre. De onde o senhor tirou isso? Sabe, às vezes o senhor me comove. Me comove mesmo. A sua ingenuidade, a sua imbecilidade, a sua maldade, ouviu bem? A sua parte com o demônio, ou sei lá com quem. Aliás, eu sei com quem o senhor tem parte… Não é bem com o demônio, não é, padre? É com um outro grupo, terreno mesmo, que nós dois conhecemos muito bem.

– O que é que você está querendo insinuar?

– Nós sabemos muito bem, não é mesmo?…

– Eu não sei de nada. Seja claro, por favor, ao afirmar as coisas. Tente ser direto.

– Mais direto do que eu estou sendo? Será possível?

– Meu Deus, dai-me forças!

– Deus está do lado do bem, padre. Não do seu.

– Cale-se!

– Cale-se você, e ouça bem. se você não decidir abandonar esta cidade agora, eu vou perder o que resta da minha paciência. Escuta bem, seu padreco de merda, eu estou cada vez mais convencido de que é perda de tempo ficar aqui tentando lhe explicar que…

Uma mulher interrompe as falas, invadindo subitamente a sala:

– Eu… Eu queria saber se…

O gordo fica duplamente furioso, e crava os olhos num guarda, berrando:

– O que é que esta mulher está fazendo aqui? Seus idiotas! Eu não disse que não queria ninguém aqui? Eu não falei, seus imbecis? Ponham essa cadela daqui pra fora!

O auxiliar corria de um lado para o outro, completamente desconcertado:

– Eu não sei como ela entrou aqui… Eu deixei ordem para…

– Cale-se, seu bosta. E suma com esta porca dessa sala!

Os dois homens seguram a mulher pelo braço e a arrastam para fora da sala. Ela olha o padre com desespero e tenta balbuciar alguma coisa, mas antes que respirasse novamente, já havia sido chutada para o meio da rua. O gordo sacudia as bochechas vermelhas e resmungava, torcendo um grande anel de esmeralda no dedo mindinho:

– Essa cretina… Vai se ver comigo. Filha de uma vaca…

– O que foi que a mulher fez de errado? – perguntou o padre.

– Bem, isso é problema dela, não é problema nosso.

– Como é?

– Não importa. O que importa é que nós dois ainda não chegamos a um acordo.

– Não há acordo possível. Faça o que mandaram você fazer, simplesmente isso. Tem medo?…

– O senhor vê como o senhor sempre torna as coisas mais difíceis? O senhor é daquela filosofia: “Se nós podemos complicar, pra que simplificar?” Certo?

– Você é um cômico. Um cômico louco. Um palhaço do terror.

– Não vejo a situação assim tão engraçada…

– O que é que eu deveria achar então?

– O senhor já acha coisas demais. Mas talvez não saiba direito o que eu acho da vida. Talvez não lhe importe. Mas sabe o que eu acho da vida? Que a vida é um dom de Deus. É isso o que eu acho. E sabe o que eu acho da morte? Eu tenho medo dela, padre. Eu tenho pavor da morte. Pavor de imaginar o meu corpo apodrecendo, devorado pelos bichos. E o senhor, não tem medo da morte? É claro que tem, padre. Todos nós temos. Faz parte do homem. Da natureza humana, compreende? Não temer a morte faz parte da natureza divina, e nós não somos deuses, não é mesmo?

– Devo tomar isto como uma ameaça?

– Ameaça, a essa altura dos acontecimentos?

– É, pode ser…

– O senhor parece que não está se importando muito com a morte. Ou seria impressão minha?

– Não estou me importando mesmo. Não faz diferença. Você é pago pra isso, não é? Não é esse o seu ofício? O seu “servicinho”, como vocês gostam de chamar? Sabe porque eu estou tremendo? Porque eu o odeio. Eu tenho vontade de matá-lo, agora…

– A mim, padre? Mas eu não lhe fiz mal algum… Pelo menos por enquanto.

O gordo de terno ri da fúria do sacerdote. Bota a mão sobre o ombro de um auxiliar e comenta com ar irônico:

– Veja só… O padreco diz que me odeia…

O padre crava as unhas nas palmas das mãos e aperta os olhos:

– Não, eu não odeio você. Eu odeio algo muito maior. Do qual você é apenas uma parte ínfima, um instrumento. Eu não odeio você. Meu Deus! Eu não posso odiar este homem!

– É bem verdade que nós não somos propriamente amigos. Mas se eu estou querendo lhe dar uma chance, é porque desejo ajudá-lo. O senhor é que não quer aproveitar. E ainda diz que me odeia.

– Nós já falamos sobre isso.

– É verdade, já falamos… Padre, eu estive pensando…

– Esteve mesmo? Como foi que você conseguiu isso?

A pergunta irritou o gordo, que dissimulou comentando com o guarda mais próximo:

– Você vê? Menino inteligente esse…

Reassumiu um ar de reflexão:

– Estive pensando que o senhor é um obsesivo. Tem idéia fixa nas coisas. É um doente mental disfarçado de gente. Sabe o porquê de tudo isso, padre? Porque o senhor é proibido de manter relações sexuais.

– Há! Só faltava essa…

– Não acredita, não é? Pois é verdade. O senhor é um castrado, que nem se masturbar pode. Então onde é que o senhor vai descarregar toda essa frustração? A frustração de ver as indiazinhas nuas, com aqueles seios redondinhos? Aqueles biquinhos virados para o alto assim? Vai descarregar nessas idéias subversivas, de querer mudar tudo. De querer virar o mundo de pernas pro ar.

– Não é nada disso. Eu poderia explicar as minhas razões, mas não interessa a você. A minha masculinidade está nos meus atos, nas minhas convicções. Eu não preciso me deitar com uma mulher para provar pra mim mesmo que eu sou um homem. Mas e vocês? Qual a razão dessa violência? Qual será? Sabe onde é que está escondida a sua potência sexual, meu caro senhor? Embaixo do seu paletó, no cano do seu Taurus 38. Sabe de que é feito o único sêmen que você consegue cuspir? De chumbo. E chumbo, que eu saiba, não faz filho nem…

O gordo se vira num repente e acerta uma porrada no padre, que o derruba.

– Cala essa boca imunda, seu merda…

Um guarda procura ajudar o padre a levantar-se. O gordo o impede e manda que volte ao seu lugar.

– Largue o homem! Ele pode se levantar sozinho…

O padre segura a borda da mesa e começa a erguer-se:

– O único músculo que você levanta: o do seu braço.

O gordo lhe acerta um pontapé na boca. O padre começa a sangrar.

– Pare com isso, que eu vou matá-lo de porrada! Seu escroto… Seu bosta…

Escutam-se vozes do lado de fora. Um grupo de mulheres se prostrou diante da delegacia, a gritar: “Solta o padre! Solta o padre!”. Pouco a pouco, o coro ia engrossando, com a adesão dos transeuntes. Um guarda foi o primeiro a ouvir os berros:

– Aí doutor, tem gente gritando lá fora…

– O que eles querem?

– Sei não, doutor. Acho que querem que o senhor solte o padre.

– Como eles sabem que o padre está aqui?

– Deve ter sido aquela mulher que entrou na sala, e depois contou pra cidade inteira.

– Filha da puta! Ela me paga… Todos esses aí fora me pagam! Vai lá na calçada, veja quem está lá, anote os nomes, todos os nomes, não deixe escapar nenhum. Guarde as caras, todas as caras!

O guarda saiu mais que depressa. O gordo convocou o outro e levaram o padre para um aposento ao lado, onde não se escutava nada. Por ordem do gordo, o padre foi amarrado pelos pés e suspenso, até que suas solas se encontrassem com o teto. A cabeça revirada do padre ficou quase na mesma altura da cabeça do gordo.

– Eles querem você, e vão ter você de volta. Mas antes nós vamos decidir se você volta com ou sem vida. A escolha ainda é sua.

– Desde o princípio não havia escolha alguma.

O gordo sacou o revólver de cano curto do cinto e encostou na testa do padre.

– Nesse nosso negócio, é a minha pele ou a sua…

– Você pode ficar com a sua. É só o que você tem.

Agarrou os cabelos do padre e foi puxando a sua cabeça de encontro à parede, com o cano sempre encostado à sua testa.

– Seu louco filho de uma égua! Você quer colocar nós dois numa enrascada? Pois bem, eu me viro. Eu sei muita coisa sobre muita gente boa. Qualquer problema comigo, e eu me viro. Mas você, seu canalha, vai ter que se explicar para os diabos…

– Há um tempo para cada coisa. Agora é o seu tempo de matar. Talvez ainda agora seja o meu tempo de viver.

– Você é um babaca…

– Cospe fogo, cidadão. Vamos, está esperando o quê?

O gordo atirou. Um tiro, pra que dois? Um esguicho forte de sangue jorrou da testa do padre, como um cano furado, e bateu na cara do gordo, que ficou cego por alguns instantes, banhado de cima a baixo de um vermelho vivo. Soltou os cabelos do homem, e o corpo oscilou pela sala, jorrando sangue para todo lado, repintando as paredes e o soalho. O gordo correu ao banheiro, para lavar a cara e as mãos. O guarda mal conseguia esconder suas golfadas de vômito. O gordo retornou com um ar nervoso, endurecido. Arrumou a gravata, vestiu o paletó e antes de sair pela porta dos fundos da delegacia, ordenou:

– Diga ao povo lá fora que venha buscar o padre. Diga ao povo que o padre já está solto.

L'autore

Julio Monteiro Martins

Julio Monteiro Martins è nato nel 1955 a Niterói, Brasile. “Honorary Fellow in Writing” presso l’Università di Iowa, Stati Uniti, ha insegnato Scrittura Creativa al Goddard College, nel Vermont (1979-82), l’Oficina Literária Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro (1982-91), l’Instituto Camões, Lisbona (1994), la Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1995), e tra il 1996 e il 2000 ha tenuto corsi in diverse città della Toscana. E’ stato uno dei fondatori del Partito Verde brasiliano e del movimento ambientalista “Os Verdes”. Avvocato dei diritti umani a Rio de Janeiro, è stato responsabile dell’incolumità dei meninos de rua. Nel paese d’origine ha pubblicato nove libri tra raccolte di racconti, romanzi e saggi, tra cui Torpalium (Ática, São Paulo 1977), Sabe quem dançou? (Codecri, Rio 1978), A oeste de nada (Civilização Brasileira, Rio 1981) e O espaço imaginário (Anima, Rio 1987). In Italia Il percorso dell’idea (petits poèmes en prose, con foto originali di Enzo Cei, Vivaldi & Baldecchi, Pontedera 1998), le raccolte di racconti Racconti italiani (Besa, Lecce 2000),La passione del vuoto (Besa, Lecce 2003), madrelingua (Besa, Lecce 2005),L’amore scritto (Besa, Lecce, 2008) e L’irruzione, racconto incluso nell’antologia Non siamo in vendita – Voci contro il regime (a cura di Stefania Scateni e Beppe Sebaste, prefazione di Furio Colombo, Arcana Libri / L’Unità, Roma 2002). Le sue poesie sono state pubblicate su varie riviste, fra cui il quadrimestrale di poesia internazionale “Pagine” e la rivista online “El Ghibli”, e nelle antologie i confini del verso. Poesia della migrazione in italiano (Firenze, Le Lettere 2006) e A New Map: the Poetry of Migrant Writers in Italy (Los Angeles, Green Integer 2006). È stato ideatore dell’evento “Scrivere Oltre le Mura”. Attualmente vive in Toscana dove, oltre a insegnare Lingua Portoghese e Traduzione Letteraria presso l’Università degli Studi di Pisa, dirige e insegna nel Laboratorio di Narrativa, che è parte del Master della Scuola Sagarana, a Lucca, ed è direttore della rivista letteraria on-line “Sagarana”. Nel 2011 è stata pubblicata la monografia sulla sua opera Un mare così ampio: I racconti-in-romanzo di Julio Monteiro Martins, di Rosanna Morace, per la Libertà edizioni, di Lucca. Nel dicembre 2013 è stata pubblicata la sua raccolta poetica “La grazia di casa mia” (Milano, Rediviva).