“A arte é a resistência do mundo, e no fim a vitória será nossa”.
Maria Martins
As duas personalidades que tomo hoje como tema –uma artista plástica e um escritor, Maria Martins e Julio Monteiro Martins – apesar da coincidência do sobrenome não têm relacionamento algum de família, ou mesmo de circunstâncias temporais, ela vivida entre 1894 e 1973, e ele nascido em 1955, vivo e muito atuante até hoje. No entanto, na minha já muito longa vivência profissional conheci e entrevistei a ambos : a ela em 1956, para o Suplemento Literário do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, a ele em 1977 para a Revista ISTOÉ, em São Paulo. Se hoje revivo esse conhecimento e os reúno, é para tomá-los como emblemáticos, entre muitos outros artistas e intelectuais, de um tema de relevo maior: o dos que são obrigados a se exilar de seu país de origem, como vítimas de perseguições, preconceitos, incompreensão, ou simplesmente por ausência de possibilidades profissionais – para conseguirem reconhecimento e consagração em países estrangeiros.
Considerada nos Estados Unidos e em vários países europeus como “a maior escultora brasileira” até hoje – com aquisição de sua mais famosa obra, O Impossível, pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1946 –, e a única mulher a ter sido incluída por André Breton em seu grupo surrealista, tanto em Nova York como em Paris, Maria Martins, desde seu regresso definitivo ao país, em 1950, até sua morte em 1973, foi desprezada, demolida pela maioria dos críticos brasileiros, e morreu amargurada, quase desconhecida, apesar de ter realizado em 1956 uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro . Nos últimos anos, porém, com a publicação de livros sobre ela nos Estados Unidos, existe um movimento de recuperação de sua memória e de sua extraordinária vida – a Cosac Naify publicou em 2010 uma excelente antologia crítica , Maria, com duas edições, uma normal e outra de luxo. Ana Arruda Callado publicou Maria Martins-uma biografia, em 2004, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo prestou-lhe definitiva homenagem , no ano passado, com uma grande exposição retrospectiva, “Metamorfoses”.
Julio Monteiro Martins , um dos mais interessantes jovens escritores do boom literário brasileiro dos anos 1974-78 – que teve como eixo a dissidência e a atividade política antiditatorial – , foi obrigado a impor-se desde a década de 1980 um “auto-exílio” que o levou primeiro a viajar por vários países, e depois a estabelecer-se definitivamente na Itália, cuja nacionalidade adquiriu e onde continua a lecionar Literatura Brasileira e a publicar romances, livros de contos e de ensaios, sendo hoje reconhecido como prolífico e original “escritor italiano”.
Menina rebelde
Maria de Lourdes Faria Alves, nascida em Campanha ( MG) em 1894, fez questão de chamar-se sempre apenas “Maria” , assinando assim a maioria de suas peças – foi escultora, desenhista, gravadora e escritora. Teve uma educação formal refinada e obrigatória para as adolescentes de sua classe social – no Colégio Sion de Petrópolis, de freiras francesas. Seu pai, João Luiz Alves, foi senador e ministro da Justiça e pertencia à Academia Brasileira de Letras. Embora conservador, fez questão de dar ás filhas a mesma formação cultural dos meninos.Maria casou-se aos 21 anos com o historiador Otávio Tarquínio de Souza, com quem teve uma filha. Mas em 1924, para grande escândalo de todos, abandonou o marido enquanto passavam uma temporada em Roma –onde, dizem, ela teve uma breve ligação amorosa com Benito Mussolini , que teria sido mais um pretexto para separa-se do marido. A sua iniciativa causou enorme escândalo social, em uma época em que raríssimas mulheres tinham essa coragem – foi obrigada a renunciar inclusive à filha e preferiu continuar a viver no exterior, onde poderia aprimorar sua formação como artista plástica.
Para se ter uma ideia da incompatibilidade existente entre a jovem mulher e o conservador e católico Otávio Tarquínio, basta lembrar o que ele escreveu no livro Monólogo das cousas , de 1914: “A profissão das letras é um perigo para as mulheres. O espírito feminino , quando letrado ou erudito, oscila entre a sensaboria e o pedantismo (…) mulheres de letras, pastiches infiéis dos homens de letras…” – citação feita por Ana Arruda Callado em seu livro de 2004.
Em 1926 Maria casou-se, na França,com o diplomata brasileiro Carlos Martins Pereira e Souza, um casamento que lhe deu mais duas filhas e um companheiro para toda vida – uma original união, “aberta”, concordando os dois sobre ligações amorosas extra-conjugais, como a que a uniu durante muitos anos , em uma grande história de amor e de companheirismo artístico,ao artista plástico francês Marcel Duchamp. Mas não foi fácil a vida do casal no início, pois legalmente só puderam se casar , no Brasil, após o falecimento do primeiro marido dela, em 1960. E o Itamaraty chegou mesmo a criar dificuldades para eles, removendo Carlos Martins para Quito – onde a perseguição, pelo jeito, continuou, pois o presidente Washington Luiz teria mesmo assinado um decreto retirando sua função diplomática e removendo-o para um consulado, por não aprovar sua união com a artista rebelde. Aliás, no que pese a sofisticação da carreira diplomática, não seria essa a primeira vez , e nem certamente a última, em que preconceitos dessa ordem interferiam na carreira -– basta lembrar, por exemplo, que no final do século XIX outro jovem diplomata, “Juca Paranhos” ( o futuro Barão do Rio-Branco) teria de enfrentar uma prolongada “excomunhão” por parte do Imperador Dom Pedro II, que lhe negava qualquer posto no exterior pelo escândalo que causara ao se casar com a jovem e modesta atriz francesa Marie Stevens, que foi a mãe de seus filhos e a companheira única de toda sua vida.
Simplesmente “Maria”
Quando Carlos Martins foi nomeado para sua primeira embaixada, no Japão , em 1934, o casal já se impusera socialmente e Maria assumia plenamente sua função de embaixatriz. Sem renunciar jamais a suas inclinações artísticas, a sua personalidade original – seu vestuário, dizem os biógrafos, fugia do engessamento obrigatório da haute couture para incluir sempre toques ciganos, ou até mesmo folclóricos –, Maria soube conciliar os deveres oficiais da posição com a absorção, em todos os países, da cultura local. Pôde assim ir aperfeiçoando no correr da década de 1930 seus processos de escultura , incorporando técnicas e elementos temáticos da maior diversidade, e estudou escultura com reconhecidos mestres, como Oscar Jespers na Bélgica, de 1936 a 1938, e mais tarde com Jacques Lipchitz, em Nova York.
Mas somente no período em que passaram nos Estados Unidos (1939-1948) foi que ela, já madura em técnicas e em idade, pôde lançar-se plenamente no meio artístico, para ser imediatamente reconhecido seu grande talento. A primeira coisa que fez foi transformar em estúdio o terceiro andar da embaixada em Washington, onde criava suas estruturas de grandes dimensões. Ao mesmo tempo dedicava-se à cerâmica, e fez instalar um forno no porão.
Participou inicialmente de uma exposição de arte latino-americana no Riverside Museum, de Nova York. Em 1941 fez sua primeira mostra individual na Corcoran Art Gallery de Washington D.C. Tão significativa que a revista Life deu uma matéria sobre ela, designando-a como “a maior escultora do Brasil”. Eram peças figurativas, de grandes dimensões, executadas em várias madeiras brasileiras e também em gesso e bronze , com uma tríplice temática: tipicamente brasileira ( Samba, Noite no Salgueiro), sacra , e social, como na peça Refugiados. O pintor Candido Portinari, que também vivia lá na época, desenhou a capa do catálogo, homenageando-a.
Maria e Carlos sentiram logo necessidade de manter também um apartamento em Nova York, para que ela estivesse mais em contato com a efervescência cultural da cidade que, com a guerra, abrigava numerosos artistas europeus, com os quais o casal estabeleceu logo laços de amizade. O pintor Fernand Léger tornou-se fervente admirador da artista brasileira, e reproduzia em desenhos suas esculturas.
Até 1942 os trabalhos de Maria eram figurativos, mas a partir daquela data ela voltou-se para o surrealismo. Realizou duas exposições, em 1942 e 1943, com estrondoso sucesso , em Nova York – na segunda, partilhou o espaço com seu amigo, o pintor Pietr Mondrian , que não conseguiu vender nem um de seus quadros, enquanto Maria vendeu todas suas peças e ainda adquiriu um trabalho do amigo para doá-lo ao Museu de Arte Moderna da cidade. Essas exposições chamaram a atenção dos artistas do grupo surrealista francês que devido à guerra havia se transferido para os Estados Unidos. O fundador do grupo, André Breton, acolheu-a imediatamente entre eles, passando até a assinar apresentações de catálogos de suas exposições, dali por diante. Em 1947 convidou-a a participar, em Paris, da grande exposição Le Surrealisme. Dizia: “…ninguém soube captar como ela [a arte] em sua fonte primitiva(…) Ela não deve nada à escultura do passado e do presente”.
Enquanto isso, no Brasil…
De 1948 a 1950, Carlos foi embaixador em Paris, seu último cargo na carreira. O casal resolveu então voltar definitivamente para o Brasil. O que representou, para Maria, somente amargura e o fim de sua carreira de escultora. Apesar de ter desenvolvido aqui intensa atividade tanto na criação da I Bienal como na do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e de ter recebido na III Bienal o prêmio de “melhor escultura”, ela foi sempre ignorada ou francamente atacada pela maioria dos críticos, totalmente polarizados em torno dos novos modismos construtivistas, concretistas e abstracionistas – aqui aportados após a premiação da escultura Unidade Tripartida, do artista suíço Max Bill , na I Bienal – e guiados pelos preceitos impostos pelo crítico norte-americano Clement Greenberg.
JULIO MONTEIRO MARTINS : “Minha única pátria é a literatura”
Nascido em Niterói em 1955, Julio Cesar Monteiro Martins impôs-se, aos vinte e poucos anos, como um dos mais criativos e prolíficos escritores de ficção do boom literário do início dos anos 1970. Ligado ao jornal Pasquim, era disputado por editoras por seus contos e romances, entre os quais destacavam-se Torpalium e Sabe quem dançou? Em 1977, apareceu–me um dia na redação da revista ISTOÉ, em São Paulo, com Caio Fernando Abreu, seu amigo e companheiro de geração. Fiz uma grande entrevista com ambos, e me orgulho até hoje de ter contribuído, na minha medida, para a divulgação de suas obras. Mas de repente, nos anos seguintes, dei pela falta de Julio no nosso meio literário, sem saber muito bem porque. Só fui dar com ele anos mais tarde, de uma forma muito lisonjeira para mim: ele havia, por conta própria, traduzido um conto meu para o italiano e publicado em sua revista Sagarana – de elevada categoria, fundada há 15 anos, na Toscana, e mantida até hoje. Soube então que seu desaparecimento das plagas tupiniquins devia-se a uma espécie de “exílio voluntário” que fora obrigado a adotar – passada a efervescência do referido boom literário – por desilusão com as condições editoriais e intelectuais (ou melhor, com a falta delas) que passaram a caracterizar o meio cultural brasileiro.
Donde expatriar-se, primeiro passando períodos nos Estados Unidos e no Japão – escrevendo muito, sempre, e divulgando nossa literatura – e depois estabelecendo-se em definitivo na Itália, a partir de 1995, e optando por suprimir um de seus nomes, segundo a prática dos escritores europeus. Atitude que lhe valeu uma carreira constante e plenamente reconhecida – tem atualmente , entre romances e livros de contos, cinco livros publicados em italiano, e nove em português, e mais dois de ensaios, sobre “experiências metaliterárias. E mais nove ,ainda inéditos. Seus processos originais de escrita são analisados inclusive em livros escritos exclusivamente sobre sua obra – como Um mare più ampio, da crítica literária Rosanna Morace ( 2013) , que diz : …toda a produção de Monteiro Martins deve ser lida como um continuum, sem fraturas de ponto de vista temática ou estilístico, e isso não obstante a mudança de língua”.
Em breve entrevista, o autor nos forneceu mais detalhes sobre sua vida e sua obra:
O que o fez deixar o Brasil?
Acho que o próprio slogan da ditadura sobre o país, “Ame-o ou deixe-o”, frutificado tardiamente. A repressão teve um efeito contrário sobre os escritores, de 1974 a 1978 provocou o boom, o entusiasmo da luta, o propósito de libertar o país do jugo ditatorial – nunca se escreveu e publicou tanto. Mas em 1979 já podia ser sentida a agonia silenciosa do movimento, o fim do interesse pela literatura no Brasil, a estagnação cultural – que continua até hoje, com a maioria das editoras desencorajando os que hoje são denominados “escritores literários” , com seus contos e romances, e exigindo livros ‘leves”, humorísticos,esotéricos, eróticos, ou de auto-ajuda. Textos débeis, piegas, um pensamento débil e superficial, lugares-comuns. Ou traduzindo autores de massa, sem nenhum valor literário, e não mais as obras de grandes autores, de excelentes ficcionistas estrangeiros – é a burritsia emergente brasileira.
Você tem dito, em entrevistas, que sofreu vários tipos de repressão e de discriminação , no Brasil. Como foi isso?
Sempre me senti remando contra a corrente. Entrei em conflito com o sistema de direita, lutei muito contra a ditadura, mas também, depois dela, desentendi-me com alguns barões da esquerda brasileira, quando a democracia foi restabelecida mas se tentou, e se tenta ainda, impor um autoritarismo vindo “do outro lado” – mas que é sempre o mesmo. Nos anos 1990, não fui só eu, mas nós todos, escritores brasileiros, vivemos um impasse : fomos colocados em uma situação extrema, ter de escolher entre o exílio em pátria, o ostracismo, as “listas negras”, a impossibilidade de publicar ou de ser eventualmente noticiado, a não ser com a submissão completa aos compadrios, aos grupos de poder e aos ditames estritamente ideológicos, e o exílio fora da pátria, traumático, mas que ao menos oferecia uma chance de recomeço. Tive brigas públicas em 1986, com a cisão do Partido Verde,que eu ajudara a fundar, e com o caso do filme Um trem para as estrelas, em 1987. Nunca mais pude publicar nada e nem trabalhar como roteirista, ou nos jornais brasileiros. O que aconteceu comigo aconteceu com muitos escritores, artistas e intelectuais brasileiros – que estão em luta até hoje. Meus novos livros daqueles anos, como Sol de inverno e A última pele, mais maduros e superiores aos da minha primeira fase, me eram devolvidos pelos editores sem sequer serem lidos, e permanecem inéditos até hoje.
Hoje, sente-se ainda um artista “migrante”, ou em “auto-exílio” ?
A expressão “auto-exílio” me parece imprópria, mesmo desonesta, com uma conotação de culpabilização da vítima. Quando um artista ou um escritor é obrigado a deixar seu país por questões pessoais e intransferíveis , frequentemente ligadas às tendências ideológicas e estéticas do poder cultural, ele sofre muito e tem de procurar vencer barreiras muito fortes, diferença de língua e de costumes, adaptação em outros meios, solidão, privação dos amigos, da família. Os exilados brasileiros da minha geração sofreram mais do que os da geração precedente, tiveram de viver um exílio fantasma, fora das instituições, humilhado pela falta de legitimação. São exilados e esquecidos, ao passo que os exilados políticos dos anos de chumbo voltaram, todos, e foram festejados. A glória alcançada no exterior não tem muito sentido, posto que concedida fora do seu lugar natural. Em uma poesia escrita em italiano, Vivere in esilio, digo: “vinho vertido / sobre a bandeja de prata / enquanto as taças / continuam vazias”.
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