A infinita saga de Julio Cesar Monteiro Martins
Para quem não conhece, eu apresento: Julio Cesar Monteiro Martins è carioca, escritor, tem 51 anos, vive na Itália há 11, precisamente em Lucca, e ensina Lingua Portuguesa e tradução na Universidade de Pisa. Mas também dirige a famosa Escola de Escritura Criativa “Sagarana” e a homônima revista publicada na Internet. Julio faz parte de uma nova geração de escritores estrangeiros que acrescentaram à língua de origem a língua italiana, como nova língua literária, mas que continuam usando a mesma forma narrativa do país de proveniência, fenômeno descrito pelos críticos como Literatura Migrante ou híbrida. Autor de diversos livros, acabou de finalizar “O amor escrito” e “Música”, que serão lançados no próximo ano, primeiro pela Besa Editrice e o segundo pela Zone, di Roma.
Sua história começa no Brasil, onde entre tantas coisas ajudou a fundar o Partido Verde, o movimento ambientalista “Os verdes” e atuou como advogado na área de direitos humanos protegendo as crianças que haviam sobrevivido ao massacre da Candelária, para que pudessem depor na Justiça sem serem vítimas elas também da “queima de arquivo” das testemunhas; passa pelos Estados Unidos e Portugal, onde ensinou literatura; até chegar na Itália, seu porto seguro. Será? Parafraseando Chico Buarque diz que tem sempre uma “roda viva que chega” e que muda tudo de lugar.
E foi justamente essa roda viva que chegou e, praticamente, o obrigou a deixar o Brasil. “Minha vida foi muito boa até o final dos anos 70, quando publiquei meus primeiros livros, aí vieram os anos 80/90, fui para os Estados Unidos, onde fiquei por 2 anos, e quando voltei vi tudo virar do avesso, ano após ano fui perdendo quase toda a minha família – hoje tenho somente um irmão que mora no Rio – e na época do Plano Cruzado, por causa da inflação que chegava nas nuvens, fui obrigado a fechar minha editora, a Anima, e fiquei sem trabalhar. Experimentei a negação e a solidão. Posso dizer, sem exagerar, que minha morte no Brasil foi virtual, um assassinato cultural, come dizia Glauber Rocha. Me envenenaram, porque é claro que para um artista o silêncio obrigatório é como a morte, uma condenação à destruição. Esse processo de exclusão e impossibilidade de todos os gêneros culminou com meu exílio na Italia, porque para um escritor, a imigração, mesmo se desejada, é sempre um exílio”, diz ele. A Itália foi escolhida por acaso, aliás, como diz o escritor: “eu não escolhi, simplesmente aconteceu”, referindo-se ao motivo de ter vindo para cá: o amor por uma italiana que conheceu em 1994, época em que ensinava em Lisboa. “Fui para o Brasil, empacotei tudo, peguei meus livros e disse tchau”, diz.
Hoje a sua primeira lingua é a italiana, porque é a com que escreve, mas não só. “É aquela em que sonho, em que xingo ou digo palavras de amor. No meu ponto de vista a mãe lingua não é aquela que a gente aprende desde que nasceu, mas aquela que usamos durante a vida, a língua do único tempo visível e palpável: o tempo presente, o único ponto acessível do fluxo da vida.” De fato, seus livros escritos em italiano são um grande sucesso, o primeiro publicado foi “Il percorso dell`idea”, em 1998, seguido de “Racconti italiani”, em 2000, “La passione del vuoto”, em 2003, e “madrelingua”, 2005. Julio também participou, em 2002, com o conto L’irruzione, da antologia “Non siamo in vendita – Voce contro il regime”, onde participaram Bernardo Bertolluci, Dario Fo, entre outros.
De seus dois novos trabalhos se pode dizer que “O amor escrito” é um livro de contos que fala da relação homem-mulher em todas as suas possíveis variações. Tem a relação de uma mulher muito anciana com um jovem; a relação de uma jovem de família tradicional européia com um negro africano; o fim de um relacionamento por motivos políticos e a continuação de um outro mesmo depois da morte de um dos parceiros; a relação da ex namorada que continua a trabalhar com seu ex, etc. “O amor escrito” estará nas livrarias italianas no início do ano que vem.
Não é a primeira vez que ele usa o argumento amor: em 1975, escreveu “Casos de Amor”, conto integrante do livro “Torpalium”, onde descrevia a relação entre homem-mulher que viviam em lados sociais opostos no Brasil dos anos 70. “Faz mais de trinta anos que me dedico ao conhecimento e aprofundamento deste campo existencial, dessa esfera da psique humana chamada amor”, diz o escritor. Já “Música”, escrito ao longo dos últimos dez anos, é seu primeiro livro de poesias em italiano e sairá como parte de uma coleção específica de obras de poetas não italianos que desenvolveram sua obra em língua italiana.
O sucesso de seus livros se dá, talvez, pelo fato de ser um estrangeiro que com sua narrativa intocável se faz entender em italiano e constrói um novo universo literário, mostrando aos leitores italianos aspectos do próprio país que eles não conheciam. Essa “revolução”, assim chamada por Julio, é conhecida como Literatura Migrante, movimento literario que nasceu nos anos 90 quando alguns escritores estrangeiros contavam em primeira pessoa suas experiências na nova terra e usavam jornalistas como editores e “salva-guardas” de seus textos, diversamente do que ocorre hoje, com o passar dos anos os textos autobiográficos deram espaço aos literários, com diversos personagens.
Uma característica de seus trabalhos é a presença constante de diálogos sem nenhum comentário do narrador, fenômeno raro por aqui, mas presente em obras de mestres brasileiros como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Hemingway, Bukowski e Raymond Carver, são alguns exemplos de escritores americanos que mergulharam nesse tipo de narrativa. Apesar do sucesso, a forma narrativa usada por Julio e pelos escritores que fazem parte dessa nova tipologia de literatura, só recentemente começa a ser considerada por críticos e jornalistas. “Existe uma curiosidade, eu sou convidado para palestras e seminários, mas eles ainda não aceitam inteiramente essa interferência literária”, diz ele. Alguns importantes críticos, especialistas nessa area, crêem que o fato mais importante a considerar é que esses escritores escrevem em italiano e se inserem na ancestral tradição desta literatura, constituindo hoje a sua vanguarda, mas ao mesmo tempo mantém a forma narrativa do país de origem.
Segundo Julio, a Literatura Migrante é um potente e quase traumático choque linguistico, temático, filosófico, ético e ideológico. Tanto que ainda não existe por aqui uma crítica que os enquadre junto aos escritores italianos dentro da “Literatura italiana contemporânea”. A crítica, em fato, é dividida, existe uma especializada na literatura italiana e outra, na migrante, “como se existissem duas histórias paralelas, mas reciprocamente invisíveis, com escritores que produzem em dimensoes diversas. Talvez no seu âmbito, os criticos encontrem um tipo de “medo da contaminação” que reflete fielmente o medo que nasce no ambiente social, o medo do novo, do desconhecido”, diz.
Guimaraes e a eterna Sagarana
Um de seus autores preferidos é sem sombra de dúvida Guimarães Rosa, tanto que o nome dado à sua escola de escritura literária foi Sagarana, assim como a revista. Segundo Julio, “a palavra, inventada por Rosa, é composta de duas partes com origem etmológica diversa: “saga” – que em português e italiano significam a mesma coisa – é uma historia que atravessa gerações, e “rana” é um sufixo coletivo que vem do idioma tupi. Sagarana seria uma história infinita, talvez, a reunião ideal de todas as histórias até então criadas pelo homem no seu longo exilio neste planeta”, explica.
Falando na revista e na escola, o que veio primeiro? “A escola, pensei em um modo eficaz de divulgá-la e fiz o site (www.sagarana.net), um ano depois, veio a idéia de uma revista online. Ela nasceu como uma espécie de laboratório virtual, um espaço para publicar textos dos alunos da escola. Hoje Sagarana é a revista literária online mais lida e uma das mais importantes da Itália”, diz o escritor. Mas os projetos literários de Julio não terminam ali, em Lucca, a cidade que, por sua causa, está respirando arte criativa e literária, acontece “Escrever além da muralha”, seminário que na última edição reuniu cerca de 250 jovens escritores de toda a Itália e escritores experimentais de todas as partes do planeta, e “Café literario”, realizado nos jardins da Villa Bottini, segundo ele, “uma divertida experiência de troca criativa entre ensinantes e alunos de escola”. O que mais pode reservar este carioca de essência italiana? Como se vê, este é só mais um capítulo da infinita saga de Julio Monteiro Martins.