Supplementi

saggio su julio – José Nêumanne

Falta um gênio na antologia dos contos do século 
Não por culpa do organizador, professor Ítalo Moriconi, mas dos herdeiros de Guimarães Rosa, o melhor contista brasileiro não teve nenhum texto selecionado para a antologia dos melhores contos nacionais dos novecentos

“Uma antologia livre de academicismos” – assim a Editora Objetiva define seu lançamento Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século no texto da contracapa ( 629 págs., R$ 49,00). De fato, não é uma antologia para alunos de Letras nem para escritores profissionais, mas para o grande público leitor, que desconhece, em sua grande maioria, o melhor e o mais comum da produção literária brasileira em qualquer século. Ou seja, trata-se de uma obra para o mercado – o que não é necessariamente mau nem forçosamente bom -, muito embora tenha, pelo menos, uma virtude: a de enfeixar num volume só textos de altíssima qualidade, que tem escasseado em outros lançamentos recentes.

Ei, cadê Rosa? Ítalo Moriconi, encarregado da tarefa, saiu-se bem dela, apesar das limitações, algumas fora de seu alcance, outras inerentes à própria natureza do trabalho. Uma delas está expressa laconicamente na “Introdução”, escrita pelo organizador de forma breve e facilmente compreensível pelo leitor comum, o que não deixa de ser um feito em obras desse gênero. “Lamento apenas que os contos de Guimarães Rosa escolhidos para a antologia não pudessem ser incluídos por dificuldades relativas à cessão dos direitos autorais”, escreveu.

Fica o registro de um antigo obstáculo à boa leitura: a usura de descendentes, parentes ou aderentes de gênios da literatura, que, desprovidos do talento do ilustre morto, vingam-se dele e da humanidade dificultando o acesso do leitor à sua genialidade, numa vingança torpe pelo fato de terem herdado apenas os direitos autorais, mas não a capacidade de produzir algo à altura do sobrenome.

O organizador não revela ao leitor quais teriam sido os textos selecionados e certamente deveria tê-lo feito, pois atenuaria o maior defeito de seu trabalho. Sim, de fato, nenhum livro que não contenha um conto de Guimarães Rosa pode se pretender a coletânea dos “100 melhores contos do século”. Sem conhecer a decisão de Moriconi, arrisco-me a dizer que, para meu gosto pessoal, pelo menos três caberiam na seleção – “A terceira margem do Rio”, de Primeiras Estórias; “A Hora e a vez de Augusto Matraga”, de Sagarana; e “Meu tio o Iauaretê”, de Estas Estórias. Mas cada um terá o direito de achar qualquer outro grande conto de Rosa para ser reunido aos publicados. Se o organizador tivesse revelado seus escolhidos, o leitor mais interessado poderia checar sua escolha, lendo-os nos livros originais.

Um Machado menor Outra limitação do trabalho do organizador foi a cronológica. O texto que abre a antologia é assinado por Machado de Assis (“Pai contra mãe”).

Ora, Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Nada mais natural que haja contos seus na amostragem (“Pílades e Orestes”, além do citado). O diabo é que a produção do gênio do Cosme Velho neste século está longe dos píncaros que ele atingiu no século passado. Por melhores que sejam os escolhidos, eles jamais poderiam ser comparados a “A cartomante”, de Várias Histórias, brilhantemente glosado por Aleilton Fonseca dia destes na coluna “Arte pela arte” no Caderno SP Variedades deste Jornal da Tarde; “Missa do galo”, de Páginas Recolhidas; ou ainda “O Alienista”, de Papéis Avulsos.

É aí que se encontra um defeito da opção pelo mercado. Como estamos no fim do século 20, interessa à editora o aproveitamento comercial da efeméride e aí se sacrifica um pouco o critério da escolha. A tradição do conto na literatura brasileira é predominantemente pós-romântica e Machado também foi pioneiro nisso. Mas infelizmente o melhor de sua obra foi sonegado pelo fato de não haver sido produzida nos novecentos, mas nos oitocentos. No caso do último de seus textos citados, é provável que outro critério mercadológico claramente adotado na antologia o expelisse. Será “O alienista” um conto ou uma novela? Eis uma discussão antiga como a da traição de Bentinho por Capitu.

O certo é que o volume já saiu grosso demais e caro demais para abrigar, além de contos, novelas, que podem ser definidas como contos mais longos ou romances mais curtos, na tradição literária lusófona. Essa talvez possa ser a explicação mais razoável para a ausência que mais senti na seleção do professor (além das de “Volteio” ou “As roupas”, de Ricardo Ramos e de pelo menos um texto de Júlio César Monteiro Martins) – a de “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, de Sérgio Sant’Anna, de quem foram selecionados os mais curtos “Conto (não conto)”, “Estranhos” e “Um discurso sobre o método”. Esse magnífico (e longo, para caber na seleção de Moriconi) texto contém, como poucos, as pistas para novas saídas criativas contra a mesmice, doença de que o conto brasileiro tinha sido acometido à época de sua vinda a lume (1982).

A morte da cachorra De qualquer maneira, antes que algum leitor mais apressado acredite que só se podem encontrar equívocos num trabalho que contém muito mérito, chegou a hora de começar a comentar seus muitos acertos.

A meu juízo, Moriconi acertou em cheio, ao incluir “Baleia”, de Graciliano Ramos, na antologia. A descrição da morte da cachorra do vaqueiro Fabiano resultou num texto de inegável qualidade literária gerando uma mui intensa emoção no leitor sensível. Mas poderia ter sido excluído da coletânea sem grandes problemas, pois mais do que um conto é um capítulo da obra-prima do escritor alagoano, Vidas Secas.

Na verdade, como contou Aluízio Falcão em outro texto publicado na citada coluna “Arte pela Arte”, esse foi um truque usado pelo autor. Os capítulos de seu grande romance são também contos independentes, porque ele precisava de dinheiro para viver e o conseguia cobrando por escritos esparsos encaminhados para publicações periódicas. A última sentença de “Baleia” (cuja morte foi filmada com raro talento por Nelson Pereira dos Santos) é inesquecível: “O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”

Cada conto a seu tempo Outra idéia feliz de Moriconi foi organizar a escolha cronologicamente, o que facilita a leitura de quem não for um aficcionado. O livro está dividido em seis partes, por épocas e fases: “De 1900 aos anos 30 – Memórias de ferro, desenhos de tarlatana”; “Anos 40/50 – Modernos, maduros, líricos”; “Anos 60 – Conflitos e desenredos”; “Anos 70 – Violência e paixão”; “Anos 80 – Roteiros do corpo”; e “Anos 90 – Estranhos e intrusos”.

Ninguém, contudo, pense que a produção entre 1900 e 1950 foi resumida em duas partes, reservando o organizador uma para cada um dos decênios subseqüentes, tenha menos qualidade desses últimos. Se houve aumento recente é porque proliferaram os contistas, o que não quer dizer que seus contos sejam melhores.

No primeiro segmento, além dos já citados, há que destacar ainda as presenças de Monteiro Lobato (“Negrinha”), Alcântara Machado (“Gaetaninho”) e João Alphonsus (“Galinha cega”). Ficou faltando Hugo de Carvalho Ramos e talvez haja pelo menos um João do Rio sobrando.

Contos nas telas O segmento dos anos 40/50 contém momentos marcantes, como o freqüentador habitual de antologias escolares “O peru de Natal”, de Mário de Andrade; o leve “Tangerine-Gril”, de Rachel de Queiroz; e o denso “A partida”, de Osman Lins. Trata-se de um segmento significativo desde a abertura, com o pungente “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal Machado, que serviu de tema a um filme lírico de Carlos Hugo Christensen. O capítulo dos contos brasileiros adaptados para as telas do cinema tem outro significativo representante dos anos 60 em “O homem nu”, texto curtíssimo de Fernando Sabino, na verdade, como “A mulher do vizinho” não um conto, mas uma crônica da vida urbana (na trilha aberta por Machado de Assis), filmado e refilmado, uma vez com Paulo José e outra com Cláudio Marzo como protagonistas.

No burburinho da moda A terceira parte contém, além de um texto que lançou um personagem e um grande escritor, “O vampiro de Curitiba”, de Dalton Trevisan, “A máquina extraviada”, de José J. Veiga, e “Menina”, de Ivan Ângelo (também autor de “Bar”), que prenunciou a febre dos contistas mineiros, que assolaria o País no decênio seguinte. É ainda nos anos 60 que o leitor se depara com um dos pontos altos da coletânea, “Feliz aniversário”, de Clarice Lispector, de quem também foi selecionado “Amor”, cujo fecho é magnífico: “Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”. Clarice também assina na parte seguinte do livro a obra-prima “Felicidade clandestina”.

A presença de Minas é forte nos anos 70, época em que Roberto Drummond publicou seu mitológico “A morte de D. J. em Paris”. Forte, mas não única, diga-se. Rubem Fonseca, que abre os anos 60 com “A força humana”, reaparece inaugurando merecidamente os 70 com “Passeio noturno – Parte I e II” e comparecendo, em seguida, com um texto digno de figurar em qualquer antologia de qualquer tempo – “Feliz ano novo”.

Aí, é possível perceber que os contistas mineiros – também representados por Luiz Vilela, em “Fazendo a barba” – fizeram escola, jogando o gênero no bochincho da moda. Por ele se aventuraram romancistas, como o paulista Raduan Nassar (“Aí pelas três da tarde”), o fluminense José Cândido de Carvalho (“Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon”) e o gaúcho Moayr Scliar (“A balada do falso Messias”). E também os poetas – alguns dos quais se deram muito bem, caso de Adélia Prado (“Sem enfeite nenhum”) e de Hilda Hilst (“Gestalt”), mas nem tanto o de Ana Cristina César, cuja presença, com “Correspondência completa”, parece ser uma concessão do organizador ao modismo. A onda, contudo, felizmente, não afogou os especialistas, muitíssimo bem representados por Lygia Fagundes Telles, com o perene “A estrutura da bolha de sabão”, e João Antônio, com “O Guardador”.

Resgate do olvido Durante os anos 80, a paulista Márcia Denser seduziu leitores e críticos com seus textos fortes e muito pessoais. A antologia de Moriconi tem também o mérito de resgatá-la do olvido, com “O vampiro da Alameda Casabranca”. Basta ler a abertura do conto – “A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interesse em sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como `maldito’ só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas” – para se familiarizar com o estilo sem papas na língua da escritora (de quem foi selecionado ainda “Hell_s Angels”) – e também com o clima da época. A época de outro maldito, Caio Fernando Abreu, autor de “Aqueles dois”, dedicado ao infelizmente não resgatado do esquecimento homem de teatro Rofran Fernandes e cujo subtítulo – “História de aparente mediocridade e repressão” – resume à perfeição aquele tempo e seus personagens.

Entre esses personagens destacam-se escritores selecionados: João Gilberto Nöll, Edla Van Steen, Nélida Piñon, Ignácio de Loyola Brandão, Autran Dourado e Edilberto Coutinho, entre outros. A eles se acrescenta a turma dos 90, com destaque para Fernando Bonassi (com o único inédito da coletânea), Bernardo Carvalho, João Silvério Trevisan, Valêncio Xavier e Antônio Torres.

De seu Tonho, do Junco, no sertão da Bahia, escolhi o começo do conto “Por um pé de feijão” para encerrar estas digressões: “Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa.”

Deus te ouça, contista! E os anjos digam amém!

 

 

 

L'autore

Jose Neumanne