R.P.10. Torpalium

Da Torpalium, São Paulo, Ática, 1977

 

TORPALIUM

Naquela época eu trabalhava nos Laboratórios Landberg. Suava o peso da maleta de amostras, esgarçando o nó da gravata, médico a médico, pelas ruas deste Rio de Janeiro.
Ganhava o triplo do emprego anterior, sempre um dinheiro a mais como prêmio e muitos presentes da firma. Meses seguidos fui considerado o melhor, o mais produtivo, um exemplo de funcionário.
O gerente, o Libório, era meu camarada. Sempre que nos encontrávamos, ele dizia: “Ô, baixinho, como vai essa força?”. Resolvia meus problemas diretamente com ele, dispensando o intermédio do Hernandez, meu supervisor, um colombiano desagradável, com ares de autoridade.
Numa quinta-feira, esqueci a pasta com os livros lá no laboratório. Voltei à noite para apanhá-la e dei de cara com o Libório chupando os peitinhos da Maralice, colega nossa, recepcionista e telefonista-chefe. Fingi que não estava vendo o lambe-lambe, encontrei a pasta e sumi pela porta do lado.
No dia seguinte, o gerente, antes tão informal, fez absoluta questão de passar por mim para murmurar um curto e seco: “Boa-tarde”. Respondi, como era de se esperar, “Boa-tarde, senhor gerente”.
Daí por diante, o Hernandez, a mando do Libório, não desgrudou mais os olhos de mim. Seu nariz era um cano de revólver sempre mirando minhas possíveis falhas.
Agüentei isso o quanto pude. Até o dia em que fui visitar um médico surdo, que usava um daqueles aparelhinhos. Comecei a mostrar as vantagens do Torpalium, nosso último sedativo, quando percebi que ele tinha desligado o aparelho. Falta de consideração! Então eu suava mais que whisky on the rocks e o velho não se dispunha a me escutar… Parei, subitamente, de falar e balancei a cabeça negativamente. Ele balançou afirmativamente. Repetí. Ele repetiu. Negativo. Positivo. Ele fez um gesto indefinido. Apontei para o telefone e insinuei que estava tocando. Ele ligou o aparelho. Eu gritei: “Você é um grande filho-da-puta!” Bati a porta e fui direto para o laboratório.
Segurei meus dois superiores pelo braço, tranquei por dentro a sala e falei sério: “O negócio é o seguinte. Se é pra me mandar embora, manda logo, mas acaba essa enrolação”. Eles se entreolharam e o Hernandez veio com uma conversa mole de que alguns funcionários teriam que ser demitidos por excesso de pessoal. “Isso é mentira, – eu disse – pois só na Zona Sul vocês precisam de mais uns cinco propagandistas, no mínimo. Pra cima de mim, não”.
“Bom, então vou dizer a verdade – falou Libório, com os olhos no chão. – É que o seu trabalho não está mais satisfazendo”. “Como é? Meu trabalho? Sou o melhor da firma desde que entrei… Chega de papo furado. Podem bater o meu aviso prévio que eu assino agora, pra não ter que pisar mais nesta merda.”
Joguei um café pela goela enquanto a secretária preparava o papel. O Libório se chegou pra perto e foi me acusando de ter contado as safadezas dele.
– Eu? Não contei nada. Que história é essa?
– Bem, eu confio na sua discrição.
– Se eu não falei é porque não tinha necessidade de falar. Falar pra quê?
– É bom mesmo, por que se abrir o bico eu fodo você.
– O quê? Ameaça? Então você vai fuder é agora. Pessoal! Pessoal! Cheguem até aqui que eu tenho uma boa novidade. Gostaria de comunicar a todos vocês o casamento do nosso querido gerente coma Maralice, nossa recepcionista. Aliás, eles já até anteciparam a sacanagem. Outro dia, eu mesmo surpreendí o parzinho dando umas trepadinhas na seção de embalagem, depois do expediente.
Seu Abreu, chefe do escritório, há quase trinta anos no Landberg, tirou os óculos e gritou, com o dedo em riste: “Seu moleque, isso é uma falta de respeito com um superior”. Apontei para o alto e respondi: “Seu Abreu, mui respeitosamente, meus votos para que o senhor também vá tomar no meio do cu”. Depois tive pena do velho, coitado, que quase morreu de falta de ar.
Voltei para entregar meu último relatório no dia da reunião com a Diretoria. Sentei, como quem não quer nada, na última cadeira do canto. O Libório estava lendo um telegrama do Mister, como chamávamos o americano que fiscalizava as filiais. Quando ele terminou a leitura, eu perguntei em voz alta: “Por que é que quando você lê os recados do Mister, você dá um sotaque inglês, se está escrito em português?” O pessoal caiu na gargalhada. O Libório ficou vermelho e engoliu a raiva, por causa da presença dos mandachuvas no local.
Um dos diretores pediu que um funcionário fizesse uma demonstração de propaganda. O Libório indicou o Jair, mas o chefão apontou para mim e falou: “Não foi aquele rapaz quem se destacou no mês passado? Deixa ele fazer a demonstração”. Fiz o melhor que pude, fui sen-sa-cio-nal, com o coração espancando o peito de ódio. No final, ele disse: “Espero que você continue por muitos anos dentro da nossa firma”. Eu me aliviei: “Não, senhor, porque eu já estou fora”. “Como assim? – perguntou”. “Fui despedido.” “Por que, meu Deus?.” “Nem eu sei.”
Saí satisfeito da vida. Fiquei muito orgulhoso de mim mesmo. De fato, não conseguí um emprego que pagasse tão bem, mas, em compensação, soube que um mês e doze dias depois da minha saída do Landberg, o Libório foi mandado embora pelo próprio Mister. Dormi tranqüilo aquela noite.
É por isso, rapaz, que eu lhe digo que hoje eu sou um homem realizado.