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Sabe quem dançcou? – Ewandro Magalhães

Eu devia ter 13 ou 14 anos, quando caiu na minha mão numa aula de literatura um livro de contos que começava assim:

 “Foi numa manhã de vento sul que a Malu pintou nas pedras pela primeira vez. Malu era o maior barato. Num é por falar não, mas no nosso grupo só dava ratazana e sapatão, só barangada da pior, e quando a Malu pintou, até o Babu ficou de olho”.

 Eu fiquei de cara. Imagina só. Volta aí no tempo uns 35 anos, aos idos de 1976, em plena ditadura militar no Brasil, e me diz se não é pra tomar com surpresa um livro assim, impresso e editado no Brasil (pelo Pasquim, é óbvio), e, ainda por cima, sugerido para consumo na rede pública de ensino. Só no primeiro parágrafo você se dá com “ratazana”, “sapatão”, “barangada” e gíria da primeira à última linha. E ou não é surpreendente?

 Eu não sei o que os milicos acharam, mas eu achei libertador e nem quis saber mais o que deu no professor pra escolher uma obra assim. Meti o livro na mochila e, chegando em casa, comecei a ler devagarzinho as histórias, uma a uma, com um gosto que nem te conto. Então era possível escrever assim? Então não era só Machado de Assis e Olavo Bilac que tinham entrada num colégio católico como o meu? Será que os padres tinham visto aquilo? Secretamente, passei a temer pela saúde do professor Marcos Sílvio — foi ele o maluco — mas segui firme na leitura, que por muito picante eu tratava de esconder dos meus pais. O livro falava em drogas, no professor do supletivo que quer comer a empregada, do transexual que foge de Minas pra São Paulo para se assumir. Falava de suicídio, de prostitutas e de tudo que não falavam os livros de Machado ou Bilac. Falava de tudo de que não falavam os padres. Falava de tudo que não se fala em casa. Mas falava de um monte de coisas de que eu e meus amigos já tínhamos ouvido falar, coisas que a gente até escrevia por dentro das portas dos banheiros e no Criatividade, um livro grande usado nas aulas de Linguagem, onde uma vez a cada cem páginas nos davam instruções para escrever ou rabiscar sem censura tudo que nos vinha à mente. Só saía palavrão e um monte de desenhos obscenos e fantasias imaginárias, geralmente com alguém comendo a professora ou chutando a bunda de um dos padrecos. Tudo isso coberto depois, é claro, por uma grossa camada de nanquin ou pincel atômico preto ou vermelho, num emaranhado de linhas à Pollock, uma verdadeira pérola da pintura abstrata.

 Um dia, vacilei e deixei o livro de bobeira em cima do sofá. Veio o velho, sentou-se, viu a capa, com o desenho de um surfista parafinado sobraçando uma pranchão enorme. Tomou o livro nas mãos, tirou, com um gesto todo seu, os óculos que só usava para enxergar de longe, e começou a ler ler, escorregando a mão pela página, devagarzinho, como a alisar cada folha antes de virá-la. Eu mal chegara no quarto me lembrei do vacilo e voltei de correria, para evitar o pior e flagrei a cena. Antes que eu pudesse voltar pelo corredor, o velho me fitou com um sorriso maroto, já tendo lido uma ou duas páginas de um pequeno conto curto, me perguntou de cara

— Quem te deu esse livro?
Eu respondi.
— Quem é esse autor?
— Não sei. Nunca tinha ouvido falar — disse entre dentes.
— Pode me emprestar até amanhã? — perguntou.
— Tem certeza? — perguntei eu de volta.
— Rapaz, esse estilo é genial! — arrematou o velho, já tomando a resposta como “sim”, deixando a sala com o livro emaixo do braço.

 Bom, anota aí mais um quadradinho na coluna das surpresas — e uns tapas a menos na minha orelha. Eu já estava pronto para o sermão — que aquilo era livro de maconheiro, literatura de desocupado e vagabundo. Mas o velho era escritor, e também estava em busca de um estilo. Ficou fã do livro, que leu e comentou comigo. Gostou particularmente de um conto chamado Referência, o tal da empregada que volta à escola. Conversamos bastante, e as conversas, assim como a leitura, mudaram minha forma de encarar a literatura. Sem saber, Júlio César Monteiro Martins — é esse o nome do escritor até então desconhecido — ajudou a criar em mim o desejo de escrever, como fazia meu pai, e mais ainda depois que o velho aprovou também aquela leitura de maconheiro (que eu não era e nunca fui, antes que me perguntem os padres ou os milicos!). Vai ver era isso que o professor Marcos Silvio queria e, por extensão, os padres.

 Passaram os anos, e o livro sumiu da minha estante e das livrarias. Na minha memória, ficou a inspiração, mas as linhas, os diálogos, o estilo foram aos poucos se perdendo. Anos mais tarde, já tendo eu ensaiado também alguns escritos, estando já eu longe do Brasil, quis saber do Júlio, autor de vários outros livros publicados no Brasil. Tinha sumido também. Do mercado e do Brasil! A coluna das surpresas vai só aumentando.

 Fui buscar e encontrei na rede uma entrevista antiga com o autor. Saiu do Brasil há 17 anos, num exílio auto-imposto, desgostoso com a vida, o mercado editorial e a política no Brasil. Andou por Portugal, pelos Estados Unidos e se instalou por fim na Itália, onde aos poucos voltou a escrever e a publicar. É responsável por uma revista eletrônica sobre literatura, a Sagarana.net. Topei com o email dele e resolvi escrever ao Júlio.

 Contei a ele a história. Descobri que ele está radicado em Lucca, a famosa cidade medieval na Toscana, e para minha surpresa (outra!) está bem na rota entre Genebra, onde moro, e Florença, onde foi estudar minha filha mais velha. Alguns outros emails trocados, e alguns telefonemas, pus-me a caminho da Itália, com a família, para cuidar da instalação da filhota, e parei no meio do caminho, para conhecer o autor dos contos apimentados da minha juventude. Recebeu-nos em casa, na melhor hospitalidade brasileira, para um simpático jantar e um papo ainda melhor que o livro. O surfista maconheiro que eu esperava virou um bonachão e respeitado professor italiano. Escreve muito, coisas diferentes, numa língua diferente, que aprendeu na marra e depois de velho. Que ele consiga criar com igual maestria numa língua adquirida já em idade adulta é, talvez, a maior das surpresas. Júlio, que hoje leciona na Universidade de Pisa, é celebrado entre os grandes escritores italianos. Aliás, acaba de ser publicado um livro sobre a sua obra na Itália, sob o título de Un mare così ampio, de autoria de Rosanna Morace. Ousei dar a ele cópias dos meus livros, um dos quais provavelmente foi parar na biblioteca da Universidade — o que já é lucro.

 Agora, engrossando o rol de surpresas (sob pena de transformar isso em clichê), todo mundo com quem eu converso nunca ouviu falar do Júlio. Mesmo depois de nove obras publicadas com sucesso no Brasil, e a despeito da incrível originalidade de seu estilo, das muitas cópias vendidas, do evidente talento, Júlio não consta de uma antologia sequer dos maiores, digamos, 200 escritores brasileiros de todos os tempos. E a lista — como imagino que você já imagine — inclui gente que, cá pra nós… bom, deixa.

 Ouvi um pouco da história das razões de tal ostracismo. É longa e melhor contada pelo próprio Júlio. Procurei o livro online. Não encontrei. Depois recebi do próprio Júlio, uma versão eletrônica, redigitada por ele mesmo. Escaneei, e botei na rede, o conto Sabe Quem Dançou?, que dá título ao livro. Quem quiser pode lê-lo aqui. O resto… sumiu, inexplicavelmente (embora eu tenha aqui os outros contos, redigitados pelo autor). Sumiu o Júlio também, para nós brasileiros, e aí eu pergunto: Sabe quem dançou?

 Eu sei: Nós.

L'autore

El Ghibli

El Ghibli è un vento che soffia dal deserto, caldo e secco. E' il vento dei nomadi, del viaggio e della migranza, il vento che accompagna e asciuga la parola errante. La parola impalpabile e vorticante, che è ovunque e da nessuna parte, parola di tutti e di nessuno, parola contaminata e condivisa.