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CARNAVAIS

CENA 1  –  O GRANDE BAILE

O clube decorou com motivos tropicais a sua quadra de basquete para o Grande Baile. Em torno da quadra, três fileiras de mesas e cadeiras esperavam os foliões. Às onze horas da noite a orquestra abriu o baile com “Cidade Maravilhosa”, e os primeiros carnavalescos começaram a entrar, carregados em macas ou empurrados em filas de cadeiras de roda.
As macas eram colocadas sobre duas ou três mesas reunidas. Os foliões que ainda caminhavam, alguns quase carregados pelos familiares, embora esqueléticos e muito pálidos e manchados, foram para o centro da quadra para sambar e pular ao som das marchinas.
O salão encheu-se após a meia-noite, e os foliões mais debilitados caíam de seus cordões, sufocados, e eram pisoteados pelos que vinham logo atrás. Outros sentavam-se no chão, exauridos, e suplicavam aos berros que não os pisassem, mas os gritos eram inúteis, pois a cantoria e a orquestra abafavam todos os outros sons, e os cordões humanos vinham pulando e os atropelavam. Os foliões pisoteados, e os que simplesmente desmaiavam ou morriam no salão eram empilhados pelos demais, formando um monte de corpos bem no centro da quadra.
Às quatro da manhã o monte já tinha uns oito metros de altura, e alguns cadáveres fantasiados rolavam do alto para caírem bem junto das mesas. Quase não havia mais espaço para a passagem dos cordões animados, que já sambavam por cima da massa humana sucumbida. Alguns carregavam seus pares destruídos no colo, como bebês, e assim continuavam a sambar.
No fim do Grande Baile restavam apenas dez a doze foliões vivos, que aplaudiam a orquestra e pediam “bis” de suas cadeiras de roda. Os músicos, urubus secos, com os ossos pontudos formando uma haste em cada ombro, começaram a guardar seus instrumentos nas caixas, enquanto os enfermeiros suados, com máscaras e luvas de borracha, suspendiam as macas para o palco e preparavam-se para carregar a orquestra combalida até o ônibus do hospital.

CENA 2 O MARAJÁ

Ele teve que descer os seis andares pelas escadas, seguido por um séquito de costureiras, e acabar de vestir a fantasia no saguão do prédio, pois os enormes adereços não cabiam no elevador. Olhou-se no espelho da portaria: por fim, o clímax, o luxo máximo. Estava pronto para o desfile. Já se transformara no mais belo e suntuoso dos mortais: “Réquiem, Majestade e Esplendor de Sua Alteza, o Marajá Imperial”.
O zelador e o vigia noturno ajudaram-no a subir no jipe aberto que o conduziria à concentração da Escola de Samba. Foi erguido ao jipe sob o aplauso frenético das costureiras, que exultavam com a obra final de dez meses de trabalho árduo. Foram seguidas nos aplausos pelos moradores dos prédios vizinhos, que se acotovelavam nas janelas para ver a partida do fenômeno. O jipe seguiu lentamente, sem freiadas bruscas, para não despedaçar o traje tão barroco, ornado com tantas pedras preciosas e semipreciosas, ouro, prata, cristais, plumas de faisão, plumas de pavão e plumas de avestruz.
O “Marajá Imperial” estacionou ao lado do carro alegórico que o exibiria em seu topo, numa pequena plataforma circular a cinco metros de altura, ao longo da Passarela do Samba, onde então seria afogado pelos aplausos de milhares de espectadores deslumbrados e apareceria com todas as suas cores e brilhos em cinqüenta milhões de aparelhos de TV, de um extremo a outro do país. Impávido, o “Marajá” foi erguido por cordas e roldanas até o topo da exótica viatura, um oásis sobre rodas, com palmeiras, tendas árabes, tapetes persas e odaliscas nuas. Um oásis que parecia mover-se sozinho pela avenida, mas era empurrado secretamente por mais de vinte negrinhos de cara cheia, escondidos sob o grande tablado de madeira que sustentava a maravilha.
Ah, é a glória! Todas as luzes sobre ele. Todos os olhos. Todos os corações. É a grande noite de sua vida. O mundo tinha o seu corpo, mas só o Carnaval era dono de sua alma. O “Marajá” sabia que no fim daquela Passarela, na Praça da Apoteose, um jovem príncipe, um príncipe encantado, a sua felicidade, esperava sorridente por ele. Só assim, na materialização absoluta de todos os seus desejos, poderia encerrar-se aquela noite maior. Ele havia se transformado interiormente, a fantasia invadira o seu espírito, e dalí por diante ele dormiria e acordaria sempre con aplausos de êxtase e deslumbramento. Haveria de cobrir de paetês e lantejoulas, de safiras e turmalinas, o seu cotidiano capenga, que se arrastava no lodo e no tédio há quase sessenta anos. Não. Ele não seria um pavão aposentado.
E no fim do desfile, lá mesmo na Praça da Apoteose, o príncipe de fato o esperava, com o sorriso e a beleza que o “Marajá” antecipara no sonho.
Às quatro horas da tarde do dia seguinte o porteiro do prédio desconfiou do silêncio e da luz acesa no apartamento e entreviu pela janela do corredor o corpo do inquilino nu sobre a cama desfeita, com as mãos e os pés pintados de dourado amarrados com fios elétricos, os olhos esbugalhados e a cabeça ensangüentada. Vestia apenas uma cueca branca, arriada na metade das nádegas. Sua dentadura aberta jazia ao lado da face e os pedaços de seu “Réquiem” espalhavam-se desordenadamente pelo chão.
O príncipe, que saíra do prédio tranquilamente naquela manhã carregando uma trouxa feita do manto do “Marajá”, levara consigo um videocassete, um telefone sem fio, uma secretária eletrônica, um toca-fitas e um pedaço de vidro polido que julgava ser uma esmeralda. A esmeralda que, durante todo o desfile, brilhara solitária no centro do turbante de cetim.

CENA 3 YEMANJÁ

Zezinho Barril foi feliz no Carnaval passado. A Escola saiu na Avenida com o enredo “As Lendas da Amazônia” e Zezinho, com o seu “boto cor-de-rosa” de doze metros de altura, abrindo e fechando o bico sobre uma gigantesca vitória-regia de compensado e isopor, ajudou a Escola a ser a campeã do Segundo Grupo e a desfilar este ano pela primeira vez entre as Escolas principais, trazendo agora o tema “Encantos e Feitiços da Bahia”.
Mas este Carnaval seria infeliz para Zezinho Barril. Sua filha de quinze anos, Eliane, havia se metido com uma quadrilha de playboys da Zona Sul, traficantes de tóxicos, e apareceu morta num apartamento de Copacabana, numa manhã de domingo entre o Natal e o Ano Novo. O laudo dos legistas concluiu overdose de cocaína injetada, mas Zezinho Barril não acreditava que sua menina fosse uma viciada e corresse tamanho risco, e concluiu por si só que fora um assassinato brutal. Talvez porque ela não quisesse ceder a sua virgindade aos traficantes, que tentaram seduzí-la enquanto estava dopada. Era esta a sua interpretação dos fatos, ruminada todos os dias entre goles de cerveja.
A perda da filha acelerou o ritmo de trabalho de Zezinho Barril. Trabalhava agora só para esquecer. Era dono e senhor do seu ofício. Carnavalesco há quinze anos, desde o nascimento de sua menina, sabia criar cenários e bonecos fantásticos para os carros alegóricos das Escolas de Samba com os materiais mais baratos e improvisados: folhas de alumínio, isopor, tábuas velhas, cacos, purpurina, latas usadas, pedaços de pneus e principalmente uma pasta que fazia com jornais velhos. Sua arte era dar forma ao lixo e excitar a fantasia do povo.
Na época da Ditadura, quando os militares determinavam até os temas dos sambas-enredos das Escolas, Zezinho Barril recebera a incumbência de esculpir com seus detritos a imagem de um certo poeta obscuro do Estado do Maranhão. A notícia chegou a menos de duas semanas do desfile, e apesar dos seus esforços foi impossível conseguir uma fotografia ou qualquer descrição física do tal poeta. Mas Zezinho não se deixou vencer: criou um boneco de cinco metros com o poeta em pose de transe criativo, com a cabeça baixa e a mão esquerda segurando a testa, a vasta cabeleira caindo diante do seu rosto e na mão direita uma pluma rabiscando uma folha de papel. Os militares, que conheciam o tal poeta tão mal quanto Zezinho, aprovaram a imagem e liberaram as verbas para o Carnaval seguinte. O poeta cabisbaixo, mais para envergonhado que para inspirado, arrancou alguns aplausos do público em sua passagem pelas arquibancadas. A missão estava cumprida.
Mas neste ano, a Escola, com maiores verbas, teria que mostrar merecimento na Avenida, levantar o público e firmar-se no Primeiro Grupo. Os orixás da Bahia estavam prontos, o carro que representava as comidas típicas, o vatapá e o carurú, também. Faltava Yemanjá, a rainha dos orixás, a deusa do mar, que com sua irresistível beleza atraía os pescadores solitários para as profundezas e nunca mais os devolvia. Zezinho Barril imaginou uma estátua de quinze metros: Yemanjá com as mãos estendidas para a frente carregaria um pescador de carne e osso, apaixonado. Ao seu redor, no grande carro, estrelas-do-mar, cavalos-marinhos, polvos, conchas e peixes de várias cores.
A armação de madeira que serviria de esqueleto para a escultura já estava pronta, assim como parte do corpo da deusa. Com a ajuda de quatro operários, Zezinho começou a montá-la às seis da manhã e às duas da madrugada dispensou os homens exaustos e ainda colou algumas conchas brilhantes no manto da imagem por mais de uma hora. Por fim, sentindo-se recompensado, abriu uma cerveja e escalou o corpo da deusa até a altura dos braços. Deitou-se sobre as mãos espalmadas, acomodando a cabeça no grande polegar, e pôs-se a observar as ripas vergadas que formavam o rosto ainda incompleto. Pensou nos traços da filha Eliane, na sua beleza selvagem, nos lábios carnudos e nos olhos rasgados. Ela receberia todos os aplausos da Avenida neste Carnaval, encarnada e encantada em Yemanjá. Através da sua arte, a sua pequena morte de manchete de jornal barato a tornaria maior do que fora em vida. Esculpiria o seu rosto com os mesmos jornais que a difamaram.
Zezinho Barril tomou o seu último gole de cerveja e dormiu nos braços de sua filha adolescente, transformado ele próprio em oferenda no seu olimpo de chão batido.

L'autore

Julio Monteiro Martins

Julio Monteiro Martins è nato nel 1955 a Niterói, Brasile. “Honorary Fellow in Writing” presso l’Università di Iowa, Stati Uniti, ha insegnato Scrittura Creativa al Goddard College, nel Vermont (1979-82), l’Oficina Literária Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro (1982-91), l’Instituto Camões, Lisbona (1994), la Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1995), e tra il 1996 e il 2000 ha tenuto corsi in diverse città della Toscana. E’ stato uno dei fondatori del Partito Verde brasiliano e del movimento ambientalista “Os Verdes”. Avvocato dei diritti umani a Rio de Janeiro, è stato responsabile dell’incolumità dei meninos de rua. Nel paese d’origine ha pubblicato nove libri tra raccolte di racconti, romanzi e saggi, tra cui Torpalium (Ática, São Paulo 1977), Sabe quem dançou? (Codecri, Rio 1978), A oeste de nada (Civilização Brasileira, Rio 1981) e O espaço imaginário (Anima, Rio 1987). In Italia Il percorso dell’idea (petits poèmes en prose, con foto originali di Enzo Cei, Vivaldi & Baldecchi, Pontedera 1998), le raccolte di racconti Racconti italiani (Besa, Lecce 2000),La passione del vuoto (Besa, Lecce 2003), madrelingua (Besa, Lecce 2005),L’amore scritto (Besa, Lecce, 2008) e L’irruzione, racconto incluso nell’antologia Non siamo in vendita – Voci contro il regime (a cura di Stefania Scateni e Beppe Sebaste, prefazione di Furio Colombo, Arcana Libri / L’Unità, Roma 2002). Le sue poesie sono state pubblicate su varie riviste, fra cui il quadrimestrale di poesia internazionale “Pagine” e la rivista online “El Ghibli”, e nelle antologie i confini del verso. Poesia della migrazione in italiano (Firenze, Le Lettere 2006) e A New Map: the Poetry of Migrant Writers in Italy (Los Angeles, Green Integer 2006). È stato ideatore dell’evento “Scrivere Oltre le Mura”. Attualmente vive in Toscana dove, oltre a insegnare Lingua Portoghese e Traduzione Letteraria presso l’Università degli Studi di Pisa, dirige e insegna nel Laboratorio di Narrativa, che è parte del Master della Scuola Sagarana, a Lucca, ed è direttore della rivista letteraria on-line “Sagarana”. Nel 2011 è stata pubblicata la monografia sulla sua opera Un mare così ampio: I racconti-in-romanzo di Julio Monteiro Martins, di Rosanna Morace, per la Libertà edizioni, di Lucca. Nel dicembre 2013 è stata pubblicata la sua raccolta poetica “La grazia di casa mia” (Milano, Rediviva).