Interviste Supplementi

Intervista. Luiz Ruffato

DIÁLOGO ENTRE LUIZ RUFFATO E JULIO CESAR MONTEIRO MARTINS SOBRE O “BOOM” LITERÁRIO BRASILEIRO DOS ANOS ’70:

1) LUIZ RUFFATO – Uma das maneiras – talvez a mais óbvia – de tentar explicar o extremo dinamismo cultural da década de 70 é evocar a reação à ditadura militar (e tudo que ela representava então, que poderia ser resumida como a total falta de liberdade individual). Ora, no entanto, isso é um paradoxo: como explicá-lo? E não seria simplificar demais a questão, já que talvez nunca a literatura brasileira tenha sido tão rica – em suas manifestações estético-políticas – como naquele momento?

JULIO CESAR – Você tem razão. Os anos 70, com duas gerações de brilhantes escritores produzindo intensamente, a do José J. Veiga, do Osvaldo França Jr. e do João Antônio, e a minha e do Caio Fernando Abreu, foi o período mais fértil e mais rico de toda a história da literatura brasileira, incluindo os celebrados anos 30, com a maturidade dos escritores modernistas. Mas não me parece tanto um paradoxo o fato de que a literatura tenha prosperado naqueles anos de censura e de repressão. Em primeiro lugar porque naqueles anos as formas de expressão artística coletivas, de larga difusão, como o cinema, o teatro e a canção popular eram muito visadas pelos militares, e a literatura, de circulação mais restrita e elitizada, permanecia imune à vigilância e aos cortes da censura. Alguns poucos livros foram censurados naqueles anos, é verdade, como o “Araceli” do Louzeiro ou o “Feliz Ano Novo” do Rubem Fonseca, mas eram casos episódicos, aleatórios e de curta duração. Refletiam provavelmente mais as idiosincrasias de algum censor indisposto com o autor ou ansioso de abafar uma denúncia contra os seus superiores do que o resultado de uma censura sistemática e racional. Além disso, nos anos que precederam o “boom” literário, as letras das canções de compositores como Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Gonzaguinha ou Caetano Veloso haviam aumentado enormemente o seu conteúdo metafórico, eram letras muito alegóricas, num verdadeiro “bordado de símbolos” traçado no tecido musical. Era o único modo possível de driblar a censura e exprimir críticas ao sistema. Os escritores que surgiram naqueles anos, como eu, eram bem conscientes de que dominavam aquele mesmo instrumento expressivo, os símbolos da linguagem, as metáforas, com igual ou maior eficácia do que os músicos de então. E assim, os escritores seguiram os passos retóricos da canção de protesto, mas com um instrumental mais amplo e potente, capaz de emocionar e de dizer tudo sem precisar de um fundo musical que sublinhasse as palavras, e fazendo uso exclusivamente da palavra escrita. Inicialmente através de antologias de jovens autores, como “Ventonovo” ou “Histórias De Um Novo Tempo”, e em seguida através de centenas de títulos quase todos de alta qualidade literária, os jovens escritores deram origem à explosão de criatividade daqueles anos.
Um último elemento deve ser lembrado aqui: na América de língua espanhola já há alguns anos estava acontecendo um “boom” literário que acabou por repercutir também no Brasil, e num certo sentido serviu de modelo ao nosso. Falo da popularidade e do aplauso mundial ao “realismo fantástico” e às obras de Garcia Márquez, de Julio Cortázar, de Vargas Llosa, de Borges, de Scorza, de Sabato e de Carpentier, para citar alguns.

2) LUIZ RUFFATO – Na sua perspectiva, o “boom” é que permitiu o aparecimento de um número enorme de revistas literárias importantes – Escrita, José, Ficção, Inéditos, para ficar só nas de circulação nacional – ou foi o contrário?

JULIO CESAR – As revistas são causa e ao mesmo tempo efeito do “boom”. Na história da literatura mundial não emergem movimentos de grande transformação sem que por trás tenham existido revistas importantes a sustentá-los. O próprio movimento modernista brasileiro não teria existido sem uma revista como a Klaxon, nem o Concretismo dos anos 50 sem o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. A diferença é que o “boom” teve atrás dele não uma, mas dezenas de revistas importantes, um fenômeno jamais visto antes ou depois daquele período, entre os anos 1975 e 1979. Creio que no início do movimento, o semanário O Pasquim, com a sua editora Codecri, teve um papel fundamental, ao menos para lançá-lo publicamente, não só nas livrarias mas também nas bancas de jornais de todo o país, com o forte poder de distribuição capilar com que O Pasquim podia contar naquela época. Mas logo em seguida, o movimento adquiriu força própria, e de Porto Alegre a Belém do Pará surgiram revistas literárias que eram lidas, quase “devoradas”, pelos jovens de então. Um encontro feliz, uma sintonia inédita no Brasil entre jovens escritores e leitores.

3) LUIZ RUFFATO – Estas revistas se constituíram em “panelinhas literárias” ou o momento, repressão, censura, etc, não permitia?

JULIO CESAR – A palavra “panelinha” tem uma conotação fortemente negativa, significando um grupo de “cúmplices” que se protegem e se promovem uns aos outros, e que se isolam, não permitindo a entrada de ninguém. São as “igrejinhas”, uma prática anti-democrática e mediocrizante, com efeitos deletérios em relação ao desenvolvimento da arte. As revistas do “boom” e os seus criadores no entanto não podem ser vistos de jeito nenhum como “panelinhas”. As revistas eram abertas a quem quisesse enviar textos, e o fato de um novo autor ser ainda desconhecido não o impedia de publicar, pelo contrário: em revistas como “Ficção”, “Escrita” ou “Inéditos”, os diretores ficavam felicíssimos quando chegava um texto interessante mandado por um autor totalmente desconhecido, por um nome novo, que dalí por diante viria a enriquecer o panorama do “boom” literário em curso. Além disso, alguns concursos literários que atraiam uma numerosíssima participação, como o Prêmio Paraná ou o Remington, serviam eles também para lançar novos talentos, sobretudo no gênero conto, o grande gênero brasileiro. No dia seguinte de ter ganho com um conto inédito por exemplo o Prêmio Paraná, o jovem escritor tornava-se conhecido e lido por milhares e milhares de outros jovens em todo o Brasil.

4) LUIZ RUFFATO – Havia, ao lado das revistas literárias, pelo menos três outros fulcros da chamada “literatura alternativa”: os jornais de esquerda que abriam espaço para textos de ficção e poesia (Versus, Em Tempo, Coojornal, etc), a “geração mimeógrafo” que não tinha acesso nem a essas publicações e os chamados “desbundados”. Como se conciliavam, se é que se conciliavam, esses diversos interesses?

JULIO CESAR – Entre esses “jornais de esquerda” eu citaria com destaque o jornal “Movimento”, que nos seus últimos anos de circulação publicava sempre um conto de um autor brasileiro jovem na sua última página, e era muito lido.

Quanto aos outros tipos de publicações que você citou, elas tiveram uma importância mais marginal, na “periferia” do fenômeno. As principais revistas literárias do “boom” não se enquadram nas categorias do “desbunde” ou do “mimeógrafo” – uma imagem romântica mas de escassa relevância histórica. As revistas importantes eram impressas em tipografias profissionais, com design gráfico belo e refinado, eram vendidas nas livrarias e editadas com grande seriedade. Penso a “Ficção”, a “Escrita”, a “José”, a “Inéditos”… E não podemos omitir aqui o Suplemento Literário de Minas Gerais, que teve um papel decisivo naqueles anos. Estas publicações não eram panfletos mimeografados, se devemos ser fiéis à verdade histórica. Eram o resultado do esforço heróico, da abnegação de editores profissionais que se revelaram verdadeiros mecenas da literatura brasileira: Wladir Nader, Cícero Sandroni, Vladimir Luz, Salim Miguel, Nilto Maciel e Hamilton Trevisan, para citar alguns.

O que nos anos 70 era uma editoria de resistência, nobre, idealista, que na grande literatura encontrou o seu sacerdócio, a partir dos anos 80 transformou-se numa editoria mercenária e venal, movida a avidez pecuniária, interessada nas vendas e nada mais. A boa literatura – prosa e poesia – foi a grande vítima destes editores “pragmáticos”, neo-liberais, não raramente disfarçados de intelectuais de esquerda, que tiveram na Companhia das Letras a empresa símbolo deste tipo de “êxito” capitalista. São anos de vergonha e de vazio, estas últimas décadas no Brasil.

5) LUIZ RUFFATO – Por que, aparentemente, o fim da ditadura foi também o fim da ebulição na literatura brasileira? A década de 80 registrou uma apatia no cenário nacional, que a década de 90 parece apenas confirmou. Qual foi o principal legado deixado pela “geração 70”?

JULIO CESAR – Você tem razão sobre a apatia e a mediocridade que imperou na literatura brasileira dos anos 80 em diante, e a razão deste fenômeno é um mistério difícil de decifrar, porque o senso comum diria que ao fim de uma ditadura a arte e a cultura deveriam florescer, mas nem sempre acontece deste modo, e no caso do Brasil aconteceu próprio o contrário. Em Portugal, por exemplo, depois da destituição do Marcelo Caetano em 1974 e o fim da longuíssima ditadura salazarista, as gavetas dos escritores portugueses – que se pensava que escondessem maravilhas e tesouros literários – estavam vazias e só aos poucos as novas obras começaram a aparecer, isto por efeito da mais perversa das censuras, e da mais eficaz: a auto-censura, quando o escritor se transforma inconscientemente no seu próprio censor “preventivo”. No Brasil aconteceu o oposto, as gavetas (e os palcos, e as galerias, e as livrarias…) estavam cheias durante a repressão, e se esvaziaram logo depois em modo total e definitivo. Não houve aqui, por exemplo, a explosão de criatividade da Itália depois do fim do fascismo, com o surgimento do neo-realismo. Na área literária, já em 1979, o “boom” foi esvaziado, os espaços na imprensa para as obras de narrativa desapareceu como por encanto. Não por acaso junto com o Ato Institucional N° 5, extinto pelo General Figueiredo naquele mesmo ano. A grande literatura do período precedente deu lugar inicialmente às auto-biografias dos políticos que retornavam do exílio, como Herbert Daniel e Fernando Gabeira, do auto-exílio, como Alfredo Sirkis ou do cárcere como Alex Polari. Eram depoimentos com algum interesse histórico mas escritos num estilo pobre, sempre em terceira pessoa com o narrador ausente ou num monologo em primeira pessoa: uma narrativa linear e primária. Já ali, em silêncio, ocorria um empobrecimento da nossa literatura. Todo o desenvolvimento que os escritores do “boom” haviam trazido, todo o extraordinário experimentalismo daqueles anos (pensemos a Osman Lins, a Antônio Barreto ou ao “Zero” de Loyola Brandão) sofria uma regressão formal, e de conseqüência – porque assim é com a literatura – uma regressão de conteúdo, uma podadura das sutilezas, das contradições, das ambigüidades e dos mistérios que só os verdadeiros escritores sabem representar. Livros escritos em estilo jornalístico, nivelados por baixo para a leitura de um público médio, prevaleceram naqueles anos, com os já citados “memorialistas”, e com textos de jornalistas improvisados em escritores como Fernando Moraes, Gilberto Dimenstein, Ruy Castro e Zuenir Ventura. Em geral, todos estes “retratos realistas do Brasil” apresentavam uma visão conciliadora com a ditadura – e era este o seu pecado maior – mas contavam com a cumplicidade de outros jornalistas, colegas ou subordinados nas redações, obtendo assim uma divulgação ampla e irrestrita para as edições deles, cada vez mais em detrimento das obras de narrativa, que ao máximo obtinham pequenas notas na obscura seção de resenhas dos jornais.

Um ulterior empobrecimento das nossas letras, simultâneo àquele, veio com a moda dos livros de auto-ajuda ou dos livros místicos e exotéricos, de autores como Nuno Cobra, Roberto Shinyashiki, Augusto Cury e os do “mago” Paulo Coelho, com as suas “parábolas” escritas em estilo acaciano e copiadas deste ou daquele testo sacro antigo.

Por fim, fechando o círculo dos livros para a massa, deu-se a invasão dos humoristas, no início com Marisa Raja Gabaglia e Carlos Eduardo Novaes, e em seguida com Chico  Anysio, Jô Soares, Luís Fernando Veríssimo e os rapazes do Planeta Diário e da Casseta Popular. As editoras abandonaram a literatura de qualidade para investir exclusivamente nestes produtos mais facilmente vendáveis, ou melhor, mais disponíveis e adequados às campanhas de marketing massificadas, à conquista de um público que, crescido durante os anos turvos do Milagre Brasileiro, era menos politizado e sobretudo menos culto e preparado em comparação com os leitores dos anos 60 e 70, e pronto ele também para consumir produtos editoriais mais “fáceis”, de estilo elementar e de conteúdo banal. A literatura, esta sim, foi mandada então ao exílio, e há trinta anos está “desaparecida”, ausente dos olhares e das mentes dos brasileiros.

O meu próprio auto-exílio na Europa é um resultado simétrico ao exílio da nossa literatura, até porque um escritor não se exila numa outra língua se não tiver razões fortíssimas para fazê-lo, e serão sempre razões culturais e literárias.

Se você me perguntar se há esperança de um futuro “renascimento” da literatura brasileira, não posso com honestidade mostrar-me otimista. Depois de duas gerações a pão e água, o que se pode esperar? A este ponto até a memória da qualidade já se perdeu, evaporou-se no tempo, e os pontos de referência indispensáveis a uma reconstrução hoje não são mais identificáveis. De qualquer modo verifico daqui deste meu longínqüo posto de observação que o Brasil está mudando infelizmente numa direção oposta àquela hospitaleira de uma alta e qualificada cultura literária.

L'autore

LUIZ RUFFATO