Interviste Supplementi

Intervista. Tereza Marques

DE TORPALIUM A RACCONTI ITALIANI: OS MUITOS PERCURSOS DE UM ESCRITOR.
ENTREVISTA DI TEREZA MARQUES DE OLIVEIRA LIMA, 29 DE MAIO DE 2001

Julio Cesar Monteiro Martins é um escritor brasileiro ou italiano? Um escritor pertencente ao que a  crítica literária define como híbrido?

Júlio Cesar Monteiro Martins, nascido no Rio de Janeiro, percorreu vários caminhos até se fixar em Lucca, na Itália, onde desenvolve vários projetos literários e de ensino. Aí se situa a publicação da revista on-line Sagarana ( www.sagarana.net ) concebida como um imenso painel que abriga o melhor da cultura literária do passado, ao mesmo tempo em que também se apresenta como um projeto estético para o presente e para o futuro.

Julio Cesar leciona na Scola Sagarana  e na Universidade de Pisa, no Departamento de Letras e de Línguas.

Sua produção literária começa com Torpalium, seu primeiro livro publicado em 1977 e já compreende vários romances e contos, escritos em português e, a partir de 1998, em italiano, com seu Il Percorso dell’Idea e Racconti Italiani. Este último, publicado este ano, colocou o nome de Julio César entre os melhores escritores italianos atuais.

Conheço Julio César desde o final dos anos 60 quando ingressei no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense em Niterói no Estado do Rio de Janeiro. Eu era então uma estudante do curso Português-Inglês que tinha no seu quadro de professores Selma Cecília Dantas Monteiro, que era a professora titular de literatura norte-americana e mãe de Júlio. Minha admiração por ela e pela literatura que ela ensinava foi criando laços cada vez mais fortes e que viriam a traçar as linhas mestras do meu percurso pessoal e profissional. Tornei-me professora estagiária de literatura norte-americana, auxiliar de ensino, professora assistente e professora adjunta. Sua paixão pelo Sul e pela obra de William Faulkner, objeto de sua tese de livre-docência, ecoaram de tal forma na minha mente e no meu coração, que hoje tenho a Literatura Sulista como minha área de pesquisa.

Lembro-me bem que toda reunião na casa de Selma tornava-se um sarau em que a literatura era analisada e discutida ao longo de almoços e jantares onde eram servidas iguarias da cozinha brasileira. Por isso, não me admirei quando Júlio César tornou-se escritor, pois esse contato diário com a literatura quase sempre enseja uma vida dedicada às letras, como bem ilustra a entrevista que ele me concedeu e que ofereço aos nossos leitores.

Tereza: Como a literatura se tornou parte integrante da sua vida?

Julio Cesar: Mesmo se são passados mais de 40 anos das minhas primeiras “manifestações literárias”, é cedo ainda para conhecer as verdadeiras motivações. Alguns mistérios da existência, como este da “unção literária”, permanecem secretos por muitos e muitos anos, e tenho a impressão de que a vida do corpo é curta demais para decifrá-los. O percurso temporal da biologia humana é bom para os dentistas, ótimo para os especuladores financeiros, mas péssimo, insuficiente, para os escritores e para as pessoas complicadas em geral. São tantos os nós, uns apertados em volta dos outros… Mas, respondendo mais objetivamente à sua pergunta, o que creio de poder dizer é que o fato se deu através de uma mistura de solidão infantil – a mais longa e irremediável que pode experimentar o ser humano – , imaginação acesíssima diante do medo e do resgate do medo, a vingança, a vitória, e através da absorção do prazer intenso que minha mãe, Selma, professora de literatura que você conheceu bem, provava pela vida que existe nos livros: era a única vida que realmente lhe interessava.

Tereza: Que autores você leu e quais foram importantes para a sua formação?

Julio Cesar: As histórias de terror que as babás contavam, e logo depois as que eu mesmo encontrava nos gibis. Muitas histórias de horror, de mortos putrefatos, desesperados e famintos que irrompem da terra revolvida pela tempestade noturna. Mais tarde, muita enciclopédia, de Aarão a Zyklon, passando por Deus (que mora entre “Crocidura” e “Drama”, volume IV da Encyclopedia e Diccionario Internacional). E muito mais tarde Poe, Kafka, Borges, Amado, Cortázar, Buzzati, Fonseca, Jack London, Balzac, Vonnegut, Clarice, Canetti, Márquez, O’Henry, enfim, os autores que me proporcionavam um grande êxtase na leitura (e algumas risadas cúmplices também). Conhecer as idéias de Freud e de Jung também foi de grande importância no início da minha vida literária, para a construção de personagens ambíguos e verossímeis. Mas o gosto pelo espanto diante do imenso potencial de horror da vida, este nunca me abandonou. É um pânico que ainda fertiliza.

Tereza: A bolsa de estudos nos Estados Unidos mudou alguma coisa no seu fazer literário?

Julio Cesar: Não foi bem uma bolsa de estudos, mas um convite para representar, como escritor brasileiro, o Brasil naquele ano, o de 1979, no International Writing Program da Universidade de Iowa, um programa único no gênero no mundo, o mesmo que, no ano passado, 2000, por iniciativa da sua “Board of Trustees”, deu-me a honra de convidar-me para candidatar-me a seu Diretor-Geral, cargo exercido pelo poeta Paul Engle até o inicio dos anos ’80. Trata-se do mais antigo e mais tradicional programa de encontros e de incentivo à criação, de escritores, do mundo, e que acontece na mesma instituição onde ocorre o Writer’s Workshop, o mais importante e famoso laboratório de formação de escritores dos Estados Unidos, e no qual me baseei em parte para criar na Itália há dois anos a Scuola Sagarana, com seu curso Master di Scrittura Creativa.

Tereza: Você aceitou o convite para candidatar-se a esse cargo de Diretor-Geral do International Writing Program?

Julio Cesar: Num primeiro momento eu aceitei, estimulado pela perspectiva de elevar novamente o IWP ao nível de importância cultural e política que possuía até os anos ’80, quando os cortes orçamentários para a área da Cultura inflitos ao programa pela administração Reagan causaram problemas logísticos ao IWP. Mas pouco depois mudei de idéia e escrevi uma carta renunciando ao processo de nomeação por três razões: a mais forte, de ordem pessoal: não queria ficar longe de Lorenzo, meu filho de cinco anos, que é muito ligado a mim e que ficaria na Itália junto com mãe, que é italiana, trabalha aqui e tem a guarda judicial do menino desde a nossa separação. A segunda, ligada a uma avaliação do próprio espírito do cargo de Diretor–Geral do IWP. Creio que o anfitrião do programa, aquele que receberá os escritores de todo o mundo, deve ser um nativo do país que os hospedará, um norte-americano; seria um contrasenso que o anfitrião fosse ele também um estrangeiro (apesar de que, após a morte de Paul Engle, a Direção foi ocupada temporariamente pela sua viúva, a romancista chinesa Hualing Nieh). De fato, após a retirada da minha candidatura, foi convidado para a Direção-Geral do programa o escritor de ensaios jornalísticos internacionais  e poeta Christopher Merrill, autor de The Old Bridge: The Third Balkan War and the Age of the Refugee, um belíssimo livro sobre o genocídio na Bósnia, apresentado por Ryszard Kapuscinski. Assim, creio que o International Writing Program está em boas mãos. Mas teve também um terceiro motivo, digamos, de ordem estético-existencial: a Toscana é muito mais bonita do que Iowa, e viver aqui é um privilégio irrenunciável…

Tereza: Fale um pouco mais sobre a Scuola Sagarana.

Julio Cesar: A Scuola Sagarana é, na verdade, um projeto antigo, que eu sonhava em fazer no Brasil, mas nunca encontrei condições materiais e de estabilidade econômica e política, de interesse mesmo, para fazê-la. Além disso, por toda a década dos Oitenta, eu trabalhei como professor de Criação Literária, em Narrativa, na Oficina Literária Afrânio Coutinho, a OLAC, em Ipanema, uma criação generosa e corajosa do professor Afrânio. Assim, em parte, a idéia tinha uma sua materialização carioca, mesmo se não minha.

Na Itália criei há cinco anos atrás um evento que transformava Lucca, durante uma semana por ano, entre agosto e setembro, na “Cidade da Escrita”: Scrivere Oltre le Mura se chamava, e que foi um grande sucesso. Ensinaram aqui, ao meu lado, o poeta Valerio Magrelli, o roteirista Vincenzo Cerami (de “A Vida É Bela” e dos outros filmes do Benigni), o escritor de Sarajevo Miljienko Jergovic’, Luís Sepúlveda, Giulio Mozzi, Pia Pera, Michel Azama, Frédéric Pagès, Xavier Désandre, enfim, um grupo internacional de primeira linha. Os alunos vinham de todas as partes da Itália, e da Suíça de língua italiana, e se increviam em números muito expressivos: em 1998, por exemplo, era cerca 150 jovens escritores. Era um espetáculo de inteligência e de beleza. Tudo isto me encorajou a criar uma instituição estável, uma verdadeira scuola di scrittura, que funcionasse durante todo o ano, e não apenas por uma semana, e cujo Master fosse um verdadeiro curso de formação de escritores, um curso de dois anos, completo, como uma pequena universidade, un college especializado. Em toda a Itália só existem duas escolas deste tipo, a Sagarana em Lucca e a Holden em Turim, dirigida pelo Alessandro Baricco. Agora, em janeiro de 2002, entraremos no terceiro ano de funcionamento, mas antes teremos todos os cursos de verão, incluindo aqueles conveniados com a University of Iowa, que promovo em Lucca e em Florença, com a presença dos professores norte-americanos.

Tereza: Como está sendo a publicação da revista on-line Sagarana? Gostei muito do título. 

Julio Cesar: O título da revista Sagarana é uma merecida homenagem a Guimarães Rosa, que apesar da importância da sua obra, pelo fato ter escrito em português, foi relegado injustamente a um plano menor durante o boom latino-americano dos anos ’60 na Europa (como de resto todos os outros brasileiros). Dar o nome de um dos seus livros de contos à Scuola é um modo de ajudar a corrigir este desequilíbrio. Além disso a palavra Sagarana, com seus quatro “as” e quatro consoantes diferentes é uma beleza de palavra, além de tudo o que ela significa é claro.

A revista on-line, além de um instrumento importante de apoio à Scuola, é uma abertura aos escritores italianos, em duplo sentido: abertura às obras inéditas de qualidade escritas por eles, e abertura da mente deles a uma outra dimensão da literatura mundial que eles desconheciam.

Tereza: Você já teve uma editora, a Anima. Foi uma boa experiência? Ajudou você a criar a revista Sagarana?

Julio Cesar: Sim, a experiência da Editora Anima foi extraordinária. Apresentamos aos leitores brasileiros títulos internacionais de grande importância, como o “Nós” de Zamiatin, as cartas de Rilke a Lou Salomé, uma nova edição em capa dura do “As Mil e Uma Noites”, que naquele tempo estava esgotado em todas as suas edições anteriores, introduzimos autores como Hunter Thompson, Joyce Carol Oates, traduzi “The Long March” de William Styron e republiquei a bela tradução que Sérgio Milliet tinha feito para “As Ligações Perigosas” de Laclos.

Pouca gente sabe, mas a Anima foi a editora que mais lançou autores novos, inéditos, no Brasil, naquele período em que esteve ativa, de 1983 a 1988. E sempre investindo nos títulos com risco próprio. Lançamos, entre os autores brasileiros, o primeiro romance do Vinícius Vianna, “Dedé Mamata”, e o primeiro livro do Pedro Bial, “O Livro dos Camaleões”, ajudamos à criação de uma revistinha que se chamava “Casseta Popular”, feita pelos meus alunos da OLAC, Roberto Adler, Hélio, Bussunda, os mesmos que depois se tornariam populares com um programa na TV Globo. Lançamos o “Carne Viva”, a primeira antologia de poesia erótica da literatura brasileira, muito ampla e completa, organizada pela Olga Savary, o “Junk Box” do Sérgio Sant’Anna; um volume de contos muito bonito, sobre os negros no Brasil, chamado “Cauterizai O Meu Umbigo”, de Eustáquio Rodrigues, enfim, uma série de lançamentos brasileiros importantes numa época em que absolutamente ninguém queria se arriscar lançando autores nacionais de narrativa, e a Companhia das Letras crescia de costas para a vida brasileira, lançando então somente ensaios sobre a Viena do Grão-Duque ou sobre a Belle Époche parisiense.

Um editora com o projeto da Anima, e sem o capital dos bancos ou de multinacionais por trás, não poderia mesmo sobreviver à forte instabilidade econômica do período, com hiperinflação, Plano Cruzado, falência do Plano Cruzado, volta da hiperinflação, Plano Bresser, não sei mais o que, uma montanha russa de desesperados, um inferno monetário, um pesadelo. Em 1988, quando mesmo se um título nosso vendesse bem, o dinheiro arrecadado, ao chegar nas nossas mãos meses mais tarde, não pagaria mais os investimentos iniciais, eu decidi fechar a editora. E talvez tenha sido ali o início do meu exílio europeu, que só se materializou seis anos mais tarde.

Tereza: Os papéis de crítico literário e professor afetam a sua criação?

Julio Cesar: Bem, crítico literário, propriamente, eu nunca fui. Durante os primeiros anos de minha carreira escrevi muitas resenhas de livros para o Jornal do Brasil e para O Globo, e já nos anos ’80, mais profundamente, para o jornal O Estado de São Paulo, onde tinha a coluna “Carta do Rio”. Mas só naquela época. Há mais de quinze anos não escrevo sobre a literatura alheia. Professor sim, continuo a exercer a atividade, sempre, nos últimos anos na Sagarana e na Universidade de Pisa, no departamento de Letras e de Línguas. Se isso afeta a minha criação? Mas nada, absolutamente nada, afeta a criação de quem é realmente criador: nem o magistério, nem o jornalismo, nem a prisão, nem uma mulher chata, nem a difteria ou a dança de Santo Anselmo, nem a guerra, nem a auto-sabotagem… Quanto à morte, bem, talvez ela afete um pouco a criatividade, mas ainda não é cem por cento comprovado.

Tereza: Que trabalho você desenvolve na Universidade de Pisa?

Julio Cesar: Em primeiro lugar, procuro dar prosseguimento ao importante trabalho feito pelo Murillo Mendes quando aqui ensinou, no inicio dos anos ’60, trazido pela Luciana Stegagno Picchio, e introduzindo pela primeira vez de modo sério e sistemático a literatura brasileira no ambiente acadêmico italiano. Por um longo período, desde a morte do Murillo, este trabalho esteve interrompido (se vê da própria biblioteca, que na parte de livros brasileiros não fez nenhuma aquisição entre 1966 e 1996, quando iniciei o meu trabalho). Agora, este ano por exemplo, o número de alunos de Português em Pisa supera o número de alunos de Espanhol, e isto graças a uma equipe de professores de nível extraordinário: os portugueses Maria José de Lancastre (titular) e António Fournier (leitor), e a italiana Valeria Tocco. Sou o único brasileiro do grupo. Mas trabalhamos em perfeita orquestração. Os resultados são um crescimento enorme do interesse pela nossa cultura. Só de teses sobre autores brasileiros nos últimos três anos tivemos umas dez: sobre Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Jorge Amado, Caio Fernando Abreu, etcétera. E isto sem qualquer apoio da Embaixada do Brasil ou de qualquer órgão oficial. Pelo contrário, se alguém nos apóia uma vez ou outra é o Instituto Camões, de Portugal, por incrível que pareça.

Tereza: Qual o papel da literatura?

Julio Cesar: Cito Hermann Broch: “O papel do romance é dizer as coisas que só o romance é capaz de dizer”.

Tereza: A literatura nos oferece vários romances em que ela é vista como um perigo imenso e, por esta razão, livros são queimados.  Você acredita que a literatura possa realmente modificar ou influenciar o leitor? O leitor é o mesmo depois da leitura de escritores como Shakespeare, Cervantes, Dante, Gabriel Garcia Marques, William Faulkner (só para citar alguns que me vêm à mente neste momento)? 

Julio Cesar: Basta dizer que um povo que consome má literatura está condenado a perder o controle de si mesmo, a alçar ao poder líderes medíocres e desonestos, a ser incapaz de traçar para si próprio uma perspectiva de futuro, e a decair até ficar totalmente submetido e controlado por outros povos. A boa literatura portanto é uma questão de segurança nacional. Vamos dizer isto aos militares e aos lobbistas de Brasília, que querem ser chamados de “parlamentares”?

Um país será o que dele fizerem os seus cidadãos-leitores. E principalmente o que sobre ele descrobrirem e expressarem os seus cidadãos-escritores.

Tereza: Em que gênero literário você se sente mais confortável?

Julio Cesar: Mas são as histórias, os enredos, que têm que se sentir confortáveis neste ou naquele gênero. Certas histórias pedem romances longos, sagas, percursos de processos atribulados que resultam em grandes transformações. Já outros pedem o conto, ou o mini-conto, como certas parábolas amargas de Cortázar. Alguns sentimentos, certas comoções, impõem o uso de uma linguagem poética, já certos conhecimentos, uma certa sabedoria sedimentada, pede o uso da prosa narrativa, ou até do ensaio, quando a lógica tem um peso superior ao da fantasia. O gênero, a meu ver, é portanto parte intrínseca à própria natureza da obra literária.

De qualquer modo, digamos que o conto de média dimensão, entre cinco e dez páginas, tem sido o gênero mais presente na minha narrativa, sobretudo nos livros escritos diretamente em italiano.

Tereza: O ato de escrever é vital para você?

Julio Cesar: Sim, é vital. Mas também é mortal. É uma definição do ser, não uma circunstância, não um mister, não um capricho, e nem mesmo uma escolha. Por isto eu o chamo de “o dom implacável”.

Tereza: De que lugar você fala? Do Brasil? Da Itália?

Julio Cesar: Falo da vida. Não basta? Plutarco dizia que nascer também é desembarcar num país estrangeiro.

Tereza: Vou reformular a pergunta. Em que espaço cultural, histórico, social, geográfico, enfim, em que espaço você está quando você escreve? O espaço da alma, como dizia Edgar A. Poe?

Julio Cesar:  É uma pergunta difícil de responder. Tentando recriar conscientemente o meu estado psicológico no momento da criação, eu diria que escrevo numa zona intermediária entre o inconsciente puro, com suas fantasmagorias e seus símbolos arquetípicos, e a área da linguagem, essa “máquina” milagrosa que alguns chamam “área de Broca”, que transforma sentimentos difusos, melancolias, medos, em palavras, em língua depurada, em beleza destilada pela razão.

Tereza: A crítica lhe tem apontado como um escritor híbrido, já que você é brasileiro de origem e escreve atualmente em italiano, tendo sido, inclusive, considerado como um dos melhores escritores italianos do momento. Como você vê isso?

Julio Cesar: Estamos entrando numa era diversa, e muitos estudiosos ainda não se deram conta: vivemos o fim das literaturas nacionais e o início da literatura propriamente mundial. Mas isso era de se esperar! Há pelo menos duas décadas o conjunto de informações gerais foi homologado, todos os homens, da Patagônia e da Ucrânia, da Califórnia e do Mali, do Paraguai e da Tailândia, compartilham das mesmas emoções públicas, das mesmas tensões, dos mesmos autores promovidos por uma mídia globalizada, das mesmas canções, dos mesmo shows, das mesmas guerras e as mesmas guerras-shows. É o advento crescente e irreversível da Weltliteratur.

Sou um escritor que pertence a esta tendência em fase de afirmação mundial, nascido no Brasil. Veja o caso de Ondaatjie, de Kureishi, de Ishiguro, de Kadaré, de Walcott… São pioneiros nessa tendência de “escritores no mundo”. E creio que a partir deste início de milênio, não é mais possível ser verdadeiramente escritor sem ser – ou ser também – escritor no mundo.

Teresa: Há algum livro ou algum personagem que lhe tenha marcado mais?

Julio Cesar: Cada livro é uma existência à parte, um ser total, com uma identidade inconfundível. Mas, nos anos ’70, escrevi um livro que até hoje considero o mais perfeito e completo tecnicamente, o mais ousado, e também, talvez por isto mesmo, o mais comovente: é o romance “Bárbara”, publicado em 1979 pela Codecri. Se trata de uma literatura “bárbara”, barbaríssima, sobretudo no panorama conformista, bem-comportado e provinciano da narrativa brasileira daquele período. “Bárbara”, o romance, foi além dos horizontes do seu tempo. Sabe, Tereza, faz bem lembrar, em qualquer momento da vida, que um dia você escreveu um livro assim.

Tereza: Você inovou de que forma nesse romance?

Julio Cesar: Em primeiro lugar, na sensibilidade presente no personagem central, uma sensibilidade moderna, de um ser humano que, para além da condição de mulher, de brasileira, de testemunha de um tempo dramático, era um ser humano com uma intuição do ciclo da existência, da precariedade do “estar no mundo”, do quanto somos todos moldados pelas tragédias que nos marcam e pelas suas, às vezes desastradas e patéticas, tentativas de superação. Bárbara antecipou os personagens mutilados pelas perdas definitivas das pessoas que amam, ou da “pátria” espiritual, personagens muito intensos, dos romances e dos filmes de hoje, como por exemplo, a mãe do filme “O quarto do Filho”, de Moretti, ou o personagem-narrador do meu romance mais recente, ainda inédito, escrito na Itália em português, “A Última Pele”.

Além disso, têm importantes inovações formais, sobretudo no fato de que é ao mesmo tempo um romance, se os seus “segmentos” como os denominei forem lidos na seqüência proposta, e um livro de contos, porque cada “segmento” é estruturalmente autônomo. E o tempo cronológico, estranhamente, passa só para ela, e não para o mundo ao seu redor, que por 80 anos fica parado nos anos setenta do século XX, enquanto ela cresce e envelhece. “Bárbara”, é uma espécie de “choque literário”.

Tereza: Como você vê a literatura brasileira produzida nos últimos anos?

Julio Cesar: Acompanho pouco, mas se devo seguir as prioridades que a imprensa cultural do Brasil vem apontando, me parece um monte de equívocos e de prestígios injustificados. Imitadores de Rubem Fonseca, de Nelson Rodrigues, de Clarice Lispector, “agüando” a obra daqueles grandes autores e recebendo aplausos por isto. Místicos de botequim sussurrando frases piegas, obviedades acacianas, e sendo adorados como gurus. Músicos populares e jornalistas pegando carona na fama para lançar romances e contos, com a cumplicidade da imprensa. Uma coisa vergonhosa. Sem coragem e sem originalidade. Mas, como acontece con freqüência, pode ser que ao mesmo tempo outros brasileiros estejam escrevendo ótima literatura e ninguém, por ignorância, negligência ou má-fé, esteja noticiando, ou sequer lendo. Enfim, não tenho nada a comentar sobre este não-fato.

Tereza: Nos planos para o futuro você inclui o Brasil?

Julio Cesar: Devolvo a pergunta: e o Brasil, me inclui?

Tereza: Julio Cesar, foi um prazer imenso poder fazer esta entrevista. Um grande abraço e muitas, muitas felicidades mesmo. Axé!

L'autore

El Ghibli

El Ghibli è un vento che soffia dal deserto, caldo e secco. E' il vento dei nomadi, del viaggio e della migranza, il vento che accompagna e asciuga la parola errante. La parola impalpabile e vorticante, che è ovunque e da nessuna parte, parola di tutti e di nessuno, parola contaminata e condivisa.